Sobre as palavras de Santo e Deus ensanguentado

Apesar do quase sepulcral silêncio da grande mídia e crítica especializada brasileira e o lamentável desconhecimento de sua elogiável produção poética, do bardo Santo Souza já disseram que é de uma destacada originalidade recriadora (Jackson da Silva Lima, historiador, em “O poeta Santo Souza – Simbologia e dicção”, Sociedade Editorial de Sergipe – 1989); que é um bruxo, um mago, que faz do português, com sua temática órfica (1) e originalidade, uma língua essencialmente humana e universal (Luiz Antonio Barreto, historiador, em texto publicado no seu blog na Infonet); que ele é um entre nós e um pouco de cada um, como herdeiro e sobrevivente da milenária aventura humana (Gizelda Morais, doutora em psicologia e poeta, em “Esboço para uma análise do significado da obra poética de Santo Souza – 1996); e que sua poesia é inconfundível, na qual o real e o maravilhoso se imbricam e se transformam em matéria e mensagem de um ancestral aedo-sacerdote (digo eu que vestido com a pele sensível dos poetas e com o coração angustiado dos oprimidos) a indicar o aperfeiçoamento espiritual do Ser Humano (Wagner Ribeiro, poeta, no prefácio da primeira edição brasileira de Deus Ensanguentado, edição do autor – 2008).

 

Nesta obra composta na maturidade de seus oitenta e nove anos e com uma memória tão ancestral e original como o nascimento dos mitos, o poeta Santo Souza, Grande Iniciado nos Mistérios Osíricos, Grande Sacerdote livre de dogmas e em luta eterna contra a opressão, a miséria e sofrimentos humanos, Mensageiro de antigos profetas, anjos, deuses e respectivos demônios criados pela infantil mente humana, denuncia as contínuas repetições dos erros humanos e alerta que O Criador tudo vê, e faz de suas palavras afiadas lanças e espadas procurando atingir o alvo: nossas consciências. Sua poesia e seu Deus Ensanguentado são um grito no reino silencioso da inação, uma bandeira tremulando ao som da música do vento no mais alto das cabeças, casas, templos, montanhas e céus para anunciar a luta por uma melhor humanidade. Sua voz não é só uma voz que se ergue desesperada pela opressão, a dor, a fome, o sangue derramado, a dignidade roubada; é isso e muito mais: sua voz se levanta como brilho de cristal ao sol para que, cegos por tão intensa claridade, possamos ver o milagre na grandeza e fragilidade da vida, despertemos o Ser Humano tão desejado que ocultamos atrás do manto de nossos medos e omissões para assim conduzir nossas curtas vidas pelo caminho do Respeito, da Tolerância, da Solidariedade, da Justiça, da auto-realização e ação evolutiva; sua voz é a de quem, havendo lido e decifrado os clássicos, os sábios, a linguagem dos deuses e demais seres espirituais habitantes pelo menos do mundo mental, é a voz de quem compreendeu o mistério da vida e da norte, e também bebeu demais do caudaloso rio de dores, lágrimas e sangue dos oprimidos e esquecidos de todos os tempos do mundo, sua voz se ergue a apontar impérios e opressores de toda a vida, sejam eles persas, gregos, romanos, alemães, árabes, espanhóis, franceses, ingleses, americanos ou quaisquer outros construtores de grandezas efêmeras, baseadas na destruição dos sonhos e da dignidade, levantadas com o sangue e os corpos dos mais fracos, a quem só estendem a mão para tirar o pouco que lhes resta, a quem não se contentam em humilhar e fazem de tudo para que creiam que são inferiores, insignificantes e naturalmente privados de direitos.

 

Nesse mundo intenso que ele cria e representa, o mítico e o espiritual se fundem com a realidade e muitas vezes o Poeta Sacerdote se mescla com o Mensageiro e com o Guerreiro rebelado, empunha suas palavras contra a selvageria que despreza a história e os conhecimentos que podem levar ao aperfeiçoamento e evolução do pó de estrelas que somos, e defende a composição de uma vida elevada, na qual brilhe a Fraternidade e a Paz olímpica ou paradisíaca, como sóis a iluminar o coração da esperança no amanhã e no futuro.

 

Assumindo a condição de testemunha espiritual e intelectual da evolução humana, Santo reconhece que em sua inexorável caminhada a vida desfila seu cortejo de coisas e acontecimentos naturais e os criados pelo Ser Humano, mas que sempre resta e restará o recomeçar de cada dia, assim como a primavera resplandece como milagroso sinal de renovação e oportunidade, pois a natureza é imparcial; a evolução segue seu curso impassivelmente e se a humanidade não despertar de sua apatia e aplacar os acessos de autodestruição, poderá ser tarde, com o grande risco de, mais uma vez, voltarmos ao princípio civilizatório, ao não darmos o passo adiante no processo evolutivo, ao não construirmos relações mais solidárias e fraternas, ao perdermos a oportunidade que ainda temos, como já ocorreu com várias civilizações consideradas avançadas.

 

Vítima espiritual e intelectual do grande drama humano, o Poeta Sacerdote Guerreiro Mensageiro muitas vezes se desespera por não ver clara a direção nem o bom futuro para as novas gerações, e grita pela ajuda de todos que tombaram injustamente, invoca musas e forças positivas dos planos superiores para continuar a luta contra os poderosos que se unem e reúnem nos palácios e templos sagrados e profanos, para seguir esgrimindo suas palavras que dão vida e emoção a um mundo mágico, onde os deuses coroam o reino dos mitos como coisa de humanos, como representações de antigos sentimentos e fantasmagóricas realidades, como crença firme no poder criador do sol sobre a água e a terra, da luz sobre a escuridão, a crença na Grande Mãe Natureza, essa misteriosa energia e força criadora que chamamos Deus.

 

Neste magnífico trabalho literário, as palavras de Santo confirmam uma opção política que vai bem além do negro na cor de sua pele, que se alça infinitamente acima da sua origem humilde, e que alcança horizontes extraordinariamente mais amplos do que aqueles que fizeram com que livres pensadores e mentes sedentas de Justiça, Verdade e Saber ocultassem e destruíssem livros de suas bibliotecas que pudessem ser considerados “suspeitosos”, em tempos de governo de mão de ferro, não tão distantes assim. Sua opção política, mais que o sonho já quase praticamente destruído de instituições e governos verdadeiramente socialistas que iluminou a ilusão de tantos na época de sua doce juventude, é o Partido dos Sábios, Avatares e Grandes Seres Humanos; dos que se mantém alerta contra as atrocidades; dos que crêem em seus semelhantes e, cheios de Misericórdia e Compaixão, aspiram ajudar a construir uma humanidade solidária e fraterna, mais justa, com o Amor sendo a Luz que conduz a uma vida de Paz e Harmonia.

 

E como a brincar com os que, talvez apressadamente, qualificam sua arte como de entendimento difícil e coisa de especialista, Santo Souza desmistifica sua linguagem e o sentido do que escreve, impregnando de frescor e beleza uma dura realidade que se repete ao longo das eras, mesclando o velho e o novo, o clássico e o moderno, dando-lhe asas de pássaro mensageiro dos anjos, deuses e estrelas cansados dos desatinos humanos.

 

Que leiamos com os olhos da alma e o coração da mente, e nos unamos a essa luta pela beleza e a arte da palavra, pela liberdade e dignidade humana, e pela vida mesma.

 

Este texto foi escrito pelo poeta Antonio Torres

 

(1)   Orfismo: antiga doutrina grega de salvação, baseada em uma interpretação do Ser Humano afastado do mundo de violência e degradação que desde sempre ameaça a sobrevivência humana, com valorização da convivência com o outro, a Natureza, a música e as outras artes.

 

 

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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