Sobre uso de máscaras em manifestações públicas

Talvez seja no Estado do Rio de Janeiro que os protestos desencadeados com as “jornadas de junho” tenham alcançado os patamares mais agudos de mobilização e de falta de preparo da Polícia Militar para garantir a ordem pública sem repressão autoritária do direito de reunião e de livre expressão do pensamento.

Como expressão desse despreparo generalizado, que coincide com a falta de amadurecimento democrático e de compreensão da diversidade própria de uma sociedade plural e complexa, a Assembleia Legislativa aprovou e o Governador sancionou a Lei Estadual n° 6.528, de 11 de setembro de 2013, que, a pretexto de regulamentar o direito constitucional de reunião, viola a liberdade de expressão imanente ao seu exercício, por meio da proibição do uso de máscaras em manifestações públicas.

Isso porque é fácil constatar que o único propósito dessa lei é o de proibir o uso de máscaras em manifestações públicas, como forma de combater a atuação dos “black blocs”, cuja atuação no Brasil tem sido intensa neste ano de 2013 e objeto de análises políticas um tanto quanto monolíticas e conservadoras por parte de quem detém controle de variadas formas de poder político e econômico.

Com efeito, a Lei n° 6.528, do Estado do Rio de Janeiro, estabelece, em seu Art. 1°, que “O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será protegido pelo Estado nos termos desta Lei”, o que é totalmente dispensável, pois o direito à reunião é garantido como direito fundamental pela Constituição da República com eficácia plena, sem necessidade de regulamentação, muito menos por parte dos estados federados, e o dever dos estados federados em assegurar a ordem pública, inclusive a realização de manifestações, também já lhes é imposto pela Constituição Federal. O parágrafo único do Art. 2° dispõe que “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, mera reprodução literal do que dispõe o inciso IV do Art. 5° da Constituição Federal. E o Art. 3° dispõe, em seus incisos I, II e III, que o direito à reunião será exercido “pacificamente”, “sem o porte ou uso de quaisquer armas” e “em locais abertos”, o que também é desnecessário, porque a norma do inciso XVI do Art. 5° da Constituição da República já assegura a liberdade de reunião “pacificamente”, “sem armas” e “em locais abertos ao público”. Finalmente, o inciso V do Art. 3° exige o prévio aviso à autoridade policial como requisito para a liberdade de reunião, o que de resto também já está previsto na Constituição Federal, ao mencionar que a liberdade de reunião deve ser exercida mediante prévio aviso à autoridade competente, aí incluídas autoridades municipais (para as suas competências de ordenação do espaço urbano) e as autoridades de segurança pública.

Não foi com o objetivo de concepção de instrumentos normativos para a proteção do direito de reunião que a mencionada lei foi elaborada, como parece óbvio. O que se percebe de não inútil (inútil no sentido de juridicamente desnecessário) nessa lei é o que revela o seu verdadeiro desiderato: limitar e restringir a liberdade de crítica e de protesto, limitar e restringir a liberdade de reunião e de manifestação, por meio da proibição singela e direta de uso de máscaras em manifestações.

E isso é percebido no Art. 2°, cuja redação é a seguinte: “É especialmente proibido o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação”. Esse intento é reproduzido no inciso IV do Art. 3°: “Art. 3º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido: (…) IV – sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação;”.

Ora, o Estado (em qualquer de suas esferas federativas) submete-se à Constituição, notadamente no que se refere aos seus limites de atuação postos ante a garantia de direitos fundamentais da sociedade. Dentre eles, a liberdade de reunião, instrumento público da liberdade de expressão, compondo, no contexto do Estado Democrático de Direito, legítimo exercício da cidadania, fundamento da República.

A liberdade constitucional de reunião dispensa regulamentação legislativa. Trata-se de norma constitucional de eficácia plena, como de resto são, em sua grande maioria, as normas constitucionais que atribuem direitos fundamentais de liberdade, oponíveis ao Estado e a terceiros.

No julgamento em que o Supremo Tribunal Federal assegurou, em decisão unânime, a liberdade de realização das “marchas da maconha” – expurgando qualquer interpretação no sentido de que configurariam a prática do crime de apologia do consumo de drogas – foram reafirmadas importantes premissas acerca dessas garantias constitucionais fundamentais. Convém registrar precisas e contundentes lições do Relator daquela ação (ADPF 187), Ministro Celso de Mello:

Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder.
(…)
É por isso que esta Suprema Corte sempre teve a nítida percepção de que há, entre as liberdades clássicas de reunião e de manifestação do pensamento, de um lado, e o direito de participação dos cidadãos na vida política do Estado, de outro, um claro vínculo relacional, de tal modo que passam eles a compor um núcleo complexo e indissociável de liberdades e de prerrogativas político-jurídicas, o que significa que o desrespeito ao direito de reunião, por parte do Estado e de seus agentes, traduz, na concreção desse gesto de arbítrio, inquestionável transgressão às demais liberdades cujo exercício possa supor, para realizar-se, a incolumidade do direito de reunião, tal como sucede quando autoridades públicas impedem que os cidadãos manifestem, pacificamente, sem armas, em passeatas, marchas ou encontros realizados em espaços públicos, as suas idéias e a sua pessoal visão de mundo, para, desse modo, propor soluções, expressar o seu pensamento, exercer o direito de petição e, mediante atos de proselitismo, conquistar novos adeptos e seguidores para a causa que defendem.
(…)
Isso significa que o Estado, para respeitar esse direito fundamental, não pode nem deve inibir o exercício da liberdade de reunião ou frustrar-lhe os objetivos ou inviabilizar, com medidas restritivas, a adoção de providências preparatórias e necessárias à sua realização ou omitir-se no dever de proteger os que a exercem contra aqueles que a ela se opõem ou, ainda, pretender impor controle oficial sobre o objeto da própria assembléia, passeata ou marcha.
(…)
É de ressaltar que, em nosso sistema normativo, o direito de reunião pode sofrer, excepcionalmente, restrições de ordem jurídica em períodos de crise institucional, desde que utilizados, em caráter extraordinário, os mecanismos constitucionais de defesa do Estado, como o estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, I, “a”) e o estado de sítio (CF, art. 139, IV), que legitimam a utilização, pelo Presidente da República, dos denominados poderes de crise, dentre os quais se situa a faculdade de suspender a própria liberdade de reunião, ainda que exercida em espaços privados.
(…)
Em período de normalidade institucional, contudo, essa liberdade fundamental, além de plenamente oponível ao Estado (que nela não pode interferir, sob pena de incriminação de seus agentes e autoridades, consoante prescreve, em norma de tipificação penal, a Lei nº 1.207, de 25/10/1950), também lhe impõe a obrigação de viabilizar a reunião, assim como o dever de respeitar o direito – que assiste aos organizadores e participantes do encontro – à autônoma deliberação sobre o tipo e o conteúdo da manifestação pública.
(…)
Disso resulta que a polícia não tem o direito de intervir nas reuniões pacíficas, lícitas, em que não haja lesão ou perturbação da ordem pública. Não pode proibi-las ou limitá-las. Assiste-lhe, apenas, a faculdade de vigiá-las, para, até mesmo, garantir-lhes a sua própria realização. O que exceder a tais atribuições, mais do que ilegal, será inconstitucional. É dever, portanto, dos organismos policiais, longe dos abusos que têm sido perpetrados pelo aparato estatal repressivo, adotar medidas de proteção aos participantes da reunião, resguardando-os das tentativas de desorganizá-la e protegendo-os dos que a ela se opõem.
(…)
Legítimos, pois, sob perspectiva estritamente constitucional, a assembléia, a reunião, a passeata, a marcha ou qualquer outro encontro realizados, em espaços públicos, com o objetivo de obter apoio para eventual proposta de legalização do uso de drogas, de criticar o modelo penal de repressão e punição ao uso de substâncias entorpecentes, de propor alterações na legislação penal pertinente, de formular sugestões concernentes ao sistema nacional de políticas públicas sobre drogas, de promover atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos manifestantes e participantes da reunião, ou, finalmente, de exercer o direito de petição quanto ao próprio objeto motivador da assembléia, passeata ou encontro.
(…)
(grifou-se)

Também no caso em que o mesmo STF declarou a inconstitucionalidade do Decreto n° 20.098/1999, do Governador do Distrito Federal – que impunha restrições à liberdade de reunião e de manifestação, como por exemplo a vedação de realização de manifestações públicas com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros em certos locais públicos, como a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios – foram explicitadas premissas de validade de eventual limitação do direito de reunião, como forma de compatibilização com outros direitos fundamentais, sem, contudo, frustrá-lo (ADI n° 1969).

Nesse sentido, afirmou o então Ministro do STF, Sepúlveda Pertence, em feliz passagem do seu voto, que via uma “rombuda inconstitucionalidade” no decreto que “na cidade moderna – e numa das cidades de maiores espaços urbanos do mundo – com vistas a uma praça projetada na esperança de que um dia o povo a enchesse, a reunião fosse permitida, desde, porém, que silenciosa”.

Por sua vez o Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, bem assentou que as restrições impostas pelo mencionado decreto mostravam-se evidentemente inadequadas, desnecessárias e desproporcionais: “Não vejo, portanto a luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e em face do próprio texto da Carta Magna, como considerar hígida, do ponto de vista constitucional, a vedação a manifestações públicas com a utilização de carros, aparelhos ou objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes”.

O mesmo se diga, portanto, em relação à proibição de uso de máscaras em manifestações públicas. Afirma-se que, com isso, pretende-se garantir o cumprimento da vedação do anonimato, que a Constituição impõe ao legítimo exercício da liberdade de manifestação do pensamento.

Todavia, o uso de máscaras em nada impede a devida identificação de pessoas que, eventualmente, estejam praticando ou em vias de praticar crimes ou ilicitudes, cabendo à autoridade policial, nesse caso, cobrar-lhe a identificação, que se fará por meio da exibição do registro civil (carteira de identidade, carteira de trabalho, carteira profissional, passaporte, carteira de identificação funcional ou outro documento público que permita a identificação). A propósito, a Constituição assegura que não haverá, em regra, identificação criminal do civilmente identificado.

Extrapola a razoabilidade presumir que um manifestante ou um grupo de manifestantes, pelo simples ato de usar máscara em manifestação pública, seja criminoso ou pretenda praticar atos criminosos.

Se alguém, presente em uma manifestação usando máscara, pratica ou intenta praticar ato criminoso, deve ter essa prática coibida não pelo uso da máscara, mas pela prática criminosa levada a efeito.

E se a finalidade da proibição do uso de máscaras em manifestações públicas é a de evitar a prática de atos de violência, estamos diante de uma medida restritiva de direito fundamental que extrapola os limites da proporcionalidade. Isso porque essa medida: a) não é adequada para impedir a violência por quem queira praticá-la, que não deixará de fazê-lo apenas porque não poderá esconder o rosto; b) não é exigível, porque outras medidas podem e devem ser adotadas para a garantia da ordem pública sem tamanha restrição do direito fundamental de reunião e de protesto inerentes ao exercício da cidadania.

A estratégia do uso de máscaras em manifestações e protestos pode e deve ser questionada quanto à sua eficácia; talvez não seja o melhor caminho a adotar, por parte de quem pretenda fazer das manifestações um ato político apto a produzir efeitos e gerar consequências transformadoras da realidade, mediante agregação de apoios e legítima pressão sobre autoridades e poderes constituídos em busca de objetivos e pautas concretas.

Todavia, a sua adoção ou não adoção não deve ser uma escolha ou determinação estatal. Noutras palavras, a liberdade de uso de máscaras em manifestações públicas não pode ser objeto de proibição do Estado. A sua eficácia como estratégia de luta deve ser examinada e avaliada a luz da política, sem a sua indevida criminalização.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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