Tragédia, novela, missa, espetáculo e esquecimento

Um espetáculo. Todos nós, no devaneio dos tempos modernos, à deriva da “agenda setting” da programação da TV. O que dá audiência? Uma menina de classe média foi jogada da janela de um prédio, o pai dela e sua companheira foram indiciados como supostos responsáveis pelo acontecimento.

E por falar em janela, não importa mais a fome de cada dia, queremos novidade na telinha. Não estamos penalizados, tudo é um cenário e todos podem ser o artista da vez. Daquela vez foi um espetáculo policial. Polícia, pai, mãe, concubina, namorada do pai, mãe abandonada, depoimento, a tela da janela furada. Quem será? Barbaridade. A menina era tão bonitinha! Branquinha, cabelos lisos, típica representante de outra sociedade, a sociedade de consumo, a representante da imagem da criança de cada sala de toda casa de classe média, essa classe que consome o espetáculo de cada dia. O menino consumindo drogas, aquele que foi espancado até a morte numa favela real, não importa. O menino é escurinho, cabelos crespos, e seu drama, muito maior do que muitos outros, não importa. A sociedade quer ver sangue de seu similar e se espantar. Os escândalos que envolvem a igreja católica, revelando, frequentemente, casos de pedofilia dentro dos seminários não merecem tanto destaque. E se a notícia sai, é de passagem rápida, não há como explorar o fato, não há como ter acesso à cena do crime, e, se vira espetáculo, não há a preocupação com os motivos mais condescendentes e todo o contexto social que envolve a problemática. Não há sangue, não há representante da maioria consumidora, não há ícone, não há polícia, investigação, não há suspense, não há tanta graça.

Segundo Guy Debord, autor do livro “A sociedade do Espetáculo”, o que é espetacular é a própria sociedade, e o espetáculo “não consiste apenas na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos,
religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida”.

O espetáculo é uma mercadoria, de todos os gostos e sabores. No seu bojo, é um fetiche, de forma elaborada e massiva, oferecida de maneira aparentemente gratuita, num contexto social de busca pelo bem estar instantâneo. O interesse pelo trágico, pelo esdrúxulo e pelo escabroso, reflete a ausência de instâncias vivenciais complementares da alma humana.

Tudo se confunde nessa sociedade. Tudo é novela, tudo é mocinho e bandido, aventura e suspense, pela agonia de se quebrar o tédio provocado pela vicissitude do estado de escassez de vida.  A verdade e a fantasia se confundem, e o homem, aquele que sai cedo para o trabalho, o mesmo que volta exausto para casa, encontra a sua identificação com o mundo, sentado num sofá, em frente a um aparelho de TV.


Ali, na televisão, estão todas as emoções que se pode ter. Ali, na novela e no tele-jornal estão a rua, as experiências de interação, as relações sociais, a cidade, o país, o mundo. Pela força massiva e a carência social pelo espetáculo, as mais poderosas mídias determinam o momento das cortinas se abrirem, e o que se vai encontrar por detrás delas. O princípio que move a ação de
apresentar uma novela ou um tele-jornal é o mesmo: a audiência. Da mesma maneira que se cria uma polêmica dentro de uma ficção, maquia-se a realidade para torná-la mais atrativa. Somos os espectadores e os atores do mesmo espetáculo.

Os fatos de uma menina ser jogada pela janela e um relevante número de crianças morrerem de fome todos os dias têm a importância que a audiência imprimir. O fim do capítulo de uma novela pode dividir a audiência com um flagrante de seqüestro. É tudo espetacular, por que precisamos do espetáculo. Assim, que sejam convocadas as estrelas para abrilhantarem o memento de euforia. O padre Marcelo Rossi – quem lembra? – rezou a missa em homenagem à menina Isabella. Nada mais justo. O padre é um espetáculo do mesmo nível da tragédia acontecida. E o espetáculo é vendido na feira.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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