UM PÁSSARO CHAMADO FLORO

A minha infância caipira, como costumam brincar os nascidos na capital, está repleta de fatos inesquecíveis, vários deles incompreensíveis para a geração shopping center. Naquele tempo, e ponha um bom tempo nisso, as freiras livres eram grandes atrações nas cidades, movimentando as mais diversas tribos em torno delas. Todas disputando democraticamente os espaços e as barracas, tornando magicamente homogêneos os interesses opostos dos consumidores, vendedores, pedintes e crianças que, como eu, eram atraídas pela farta diversão oferecida.

Eu vibrava com os cordéis, aprendia com a agilidade poética dos repentistas, tinha prazer em sentir o forte perfume que exalava das barracas que vendiam fumo de rolo, e me divertia com os vendedores de remédios que curavam todos os tipos de doença, de costela caída até as dores amorosas. A parte da feira que se dedicava à venda de aves e animais silvestres, muito procurada pelos feirantes e crianças, não me atraia muito, embora reconheça que era interessante passear no meio de marrecos, papagaios, teiús, preás, tatus e tamanduás. O Brasil ainda não havia compreendido a importância de manter viva a sua fauna, sendo até então comum a inconseqüentemente exposição de sua ignorância ecológica.

Mas eu não gostava mesmo era de ver a forma como tratavam os passarinhos, vários deles amontoados em minúsculas gaiolas. Não era raro encontrá-los mortos ou gravemente feridos, quando então eram impiedosamente descartados e jogados ao lixo. Eram assanhaços, caboclinhos, azulões, pintassilgos, xexéus, pegas, periquitos e dezenas de outras aves que deixavam de encantar a vida, ironicamente condenados à morte apenas porque catavam a beleza da própria vida.

É claro que não conseguia convencer meus amigos de que criar passarinho era uma judiação absurda, mesmo porque, segundo eles diziam, estavam melhor cuidado nas gaiolas do que soltos na natureza. Na gaiola não precisavam se preocupar com comida, pois o alpiste, o xerém ou o pão com leite estavam sempre à disposição. E realmente meus amigos adoravam seus pássaros, muitos deles chegando a batizar seus fieis cantadores com os mais diversos e engraçados nomes.

Eu lembro de um passarinho chamado Floro, pertencente a um vizinho que tinha em sua casa vários curiós e assanhaços, o que fazia de sua varanda uma verdadeira e invejável orquestra da natureza. Mas Floro ousava destoar daquele conjunto de aprisionados músicos, pois se recusava a cantar como os demais curiós, deixando desesperado o meu vizinho. À mudez musical de Floro, meu amigo respondia que não sossegaria enquanto não escutasse o seu canto, o que fazia do seu querer uma verdadeira obstinação.

Lembro-me que certa vez ele passou vários dias chateado comigo, pois eu tinha dito que torcia para que seu passarinho fugisse da gaiola, inclusive sem que lhe permitisse ouvir o seu cobiçado canto. No fundo eu tinha medo de que sua obstinação resultasse na “ignorância ou maldade mais pior”, como a que fizeram com o Assum Preto de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Os dois já nos advertiam que era comum furar os olhos dos passarinhos para que eles, cegos dos olhos, não vendo a luz, cantassem de dor.

A semana que passou foi marcada pela notícia de que Floro havia fugido da gaiola, ou melhor escrevendo, que possivelmente abriram a gaiola para que ele fugisse. Porém, para desencanto meu, o Floro que fugiu não foi o inocente pássaro que marcou a minha infância, mas sim um daqueles homens que matam e descartam a vida como se ela lixo fosse. A fuga de Floro Calheiros, já cantada antecipadamente pelos meios de comunicação, deixa no ar o lamento triste do cidadão, mais uma vez vítima da ignorância ou da maldade ainda pior. A liberdade do homem-Floro é sinônima de prisão domiciliar do pássaro-cidadão. E enquanto ele cantar livremente o som da impunidade, mudos estarão os que tiveram a coragem de denunciar a sua ação destrutiva. O homem-Floro, que em nada se parece com o pássaro-Floro, está agora livre para furar os olhos daqueles que enxergaram que era a impunidade quem começava a cantar de dor.

(*) Cezar Brito é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear.
cezarbritto@infonet.com.br

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