MUSIQUALIDADE, por Rubens Lisboa

M U S I Q U A L I D A D E

 

 

R E S E N H A

 

Cantora: MARIA BETHÂNIA

CD’s: “ENCANTERIA” e “TUA”

Selo e Gravadora: QUITANDA e BISCOITO FINO

 

Quem viveu os últimos anos da década de setenta e os primeiros da seguinte, sabe do que estou falando: eram realmente eventos bastante esperados os lançamentos anuais dos discos de Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa e Simone, cantoras que centralizavam as atenções dos amantes da música popular brasileira. Com a apressada passagem da Pimentinha para o plano superior, por algum tempo as outras três reinaram absolutas e até hoje, após mais de vinte e cinco anos, é difícil apontar uma outra intérprete que tenha feito tanto “estrago” (no bom sentido, é claro!) no nosso cancioneiro (talvez Marisa Monte e, em algum momento, Rita Lee e Elba Ramalho). Mas o fato é que o tempo passou e cada uma delas optou por caminhos pessoais. Gal adotou uma criança e leva atualmente a carreira a passos de tartaruga. Simone, depois de derrapar em alguns trabalhos, vem lançando bons álbuns, mas ainda
precisa de um empurrãozinho da sorte para voltar a obter um reconhecimento maior. Sobrou-nos, então, falar de Bethânia, objeto da presente resenha, sem dúvida a mais corajosa delas.

Desde que resolveu aportar na gravadora Biscoito Fino, em 2002, que a filha mais famosa de Dona Canô vem lançando discos com uma frequência tão incomum quanto salutar (a maioria deles resultam temáticos). A artista é conhecida, no meio artístico, pelo seu temperamento difícil: exigente ao extremo com quem trabalha com ela, é também de um detalhismo e de um perfeccionismo ímpares. Tais características, contudo, têm decerto contribuído para que seus trabalhos venham rotineiramente obtendo boa receptividade tanto da mídia especializada (em geral, as críticas lhes são bastante favoráveis) quanto do público consumidor (ela ainda é uma reconhecida boa vendedora de discos).

Após lançar, em 2006, dois CD’s ao mesmo tempo (“Mar de Sophia” e “Pirata”), numa estratégia (à época) vista com reserva por muitos, Bethânia repete a ousadia agora fazendo chegar às lojas concomitantemente dois novos CD’s: “Encanteria” (que sai pelo selo Quitanda, de propriedade da própria artista) e “Tua” (um lançamento da gravadora Biscoito Fino). Ambos compostos por onze faixas, são trabalhos conceituais, mas que (por mais que alguns queiram forçar a barra) de fato não se complementam. É que enquanto o primeiro vem carregado de tintas que remetem à religiosidade, ao sincretismo e a uma mistura percussiva que lhe confere um certo clima de festa, o segundo mergulha de cabeça nas canções de cunho romântico, com o amor e as dores dele decorrentes em primeiro plano e, embora seja justo reconhecer que o mesmo não soa monocórdio (muito pelo canto vigoroso, seguro e plural da irrepreensível intérprete), a atmosfera que o ronda é mesmo outonal.

Bethânia – cabe aqui ressaltar – é de fato uma protegida dos deuses e orixás: sua voz parece vinho pois, diferentemente do que geralmente ocorre, vem melhorando com o passar dos anos. Ela se encontra atualmente em perfeita forma e, mesmo optando por baixar os tons das canções, dá para comprovar que o vigor vocal se encontra tão potente quanto outrora. E a sabedoria do tempo fez até com que ela domasse os arroubos dramáticos de antes (que, às vezes, lhe conferiam uma interpretação que beirava o over), fazendo, assim, com que a emoção que lhe brilha inata resulte agora salutarmente garimpada.

“Encanteria”, em especial, traz um trabalho gráfico super caprichado. Nele, se destaca, no repertório, a presença do compositor baiano Roque Ferreira, o qual assina quatro faixas. Na de abertura, “Santa Bárbara”, Bethânia se permite acompanhar (em clima camerístico) tão-somente pelo piano majestoso de Cristóvão Bastos. E o referido autor se mostra inspirado, a seguir, tanto no samba “Feita na Bahia” quanto no xote manso “Minha Rede”. Mas seu melhor instante é, sem sombra de dúvida, o animado samba-de-roda “Coroa do Mar”, um dos ótimos achados desse disco, que desponta ao lado da bonita faixa-título, de autoria de Paulo César Pinheiro, contando com a participação especial dos alunos da Escola Portátil de Música.

A cantora se sai com maestria tanto quando apresenta uma melodia complexa
(a veloz “Linha de Caboclo”, outra de Paulinho Pinheiro, agora em parceria com Pedro Amorim) quanto reafirma sua predileção por temas ruralistas (“Doce Viola”, de seu maestro Jaime Além, e “Ê Senhora”, inédita de Vanessa da Mata, a qual termina com os versos de “Batatinha Roxa”, tema recolhido do folclore). A conterrânea de Santo Amaro da Purificação, Dona Edith do Prado (falecida recentemente) ganhou homenagem em “Saudade Dela” (de Roberto Mendes e Nizaldo Costa, que conta com as participações afetivas de Caetano Veloso e Gilberto Gil nos vocais). Os melhores momentos, contudo, ficam por conta da congada “Estrela” (do mineiro Vander Lee) e do samba “Sete Trovas
” (de Consuelo de Paula, Etel Frota e Rubens Nogueira, que faz menção, na letra, a trabalhos anteriores de Bethânia, tais como “Talismã”, “Rosa dos Ventos” e “Mel”).

“Tua”, por sua vez, traz uma sonoridade eminentemente acústica. A base é sempre o violão. Os arranjos elegantes, porém enxutos, destacam a presença, aqui e ali, de músicos excepcionais. É o caso, por exemplo, de Hamilton de Holanda que, com o seu bandolim, confere ares lusitanos a “Remanso” (de Moacyr Luz e Aldir Blanc) e de Toninho Ferragutti e seu harmonioso acordeão na delicada “Até o Fim” (de César Mendes e Arnaldo Antunes, incluída na trilha sonora da telenovela global “Viver a Vida”). Já o piano de João Carlos Assis Brasil faz a diferença no samba-canção “É o Amor Outra Vez”, parceria de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, e a guitarra de Victor Biglione ressalta a beleza de “O Que Eu Não Conheço” (de Jorge Vercillo e J. Velloso) – um dos pontos altos do álbum – introduzida com trecho de “A Mão do Amor”, de Roque Ferreira, a capella. Aliás, o multipresente Roque aqui também assina duas outras faixas: a guarânia “Guriatã” e a valsa “Domingo”. A faixa-título é tema inspirado que leva a assinatura (e a grife) de Adriana Calcanhotto, mas os maiores destaques ficam mesmo por conta de “Fonte” (de Saul Barbosa e Jorge Portugal, faixa que traz um tão comentado – rápido – falsete de Bethânia) e de “Você Perdeu” (de Márcio Valverde e Nélio Rosa, que surge após a citação de “Dama, Valete e Rei”, de Ruthinaldo e Paulo Gracindo). Nada, contudo, que supere o momento sublime que transparece em “Saudade” (de Chico César e Moska, faixa que conta com a intervenção vocal de Lenine). Completa o repertório “O Nunca Mais”, canção menos inspirada de Roberto Mendes e Capinan, com direito, em seu início, a uma vinheta de “Lamentação”, de Mauro Duarte.

Embora de qualidade inquestionável, nenhum dos dois CD’s possui um repertório arrebatador. Maria Bethânia conseguiu reunir boas canções (não há como negar), mas com exceção da citada “Saudade”, não são músicas excepcionais como as que ela costumava gravar em anos pretéritos. No palco, certamente deverão crescer por conta de sua presença iluminada. Mas os fãs mais exigentes da Abelha Rainha sempre querem mais, muito mais…  

 

 

N O V I D A D E S

 

 

·                     Delicioso é o adjetivo que se pode utilizar para enquadrar o CD “A Zeropeia”, um lançamento da gravadora Biscoito Fino voltado para o mundo infantil. Trata-se de uma história escrita por Herbert de Souza, o Betinho, a qual, através de uma ideia da cantora mineira Regina Souza, ganhou um roteiro adicional em que foram incluídas sete ótimas canções criadas pelos conterrâneos Vander Lee, Flávio Henrique, John Ulhoa, Chico Amaral e Affonsinho e interpretadas, além da própria Regina e de Vander, por Sérgio Pererê, Marina Machado, Marku Ribas, Maurício Tizumba, Fernanda Takai e Laura Machado. Imperdível para todas as idades!

 

·                     O Rappa registrou as imagens do show que realizou recentemente na favela da Rocinha para se transformar em DVD que chegará às lojas no comecinho do próximo ano e que tem como mote festejar os quinze anos de carreira da banda.

 

·                     A cantora Karla Sabah lança, através de uma parceria entre as gravadoras LGK Music e Som Livre, o seu terceiro CD. Intitulado “Cala a Boca e Me Beija”, o novo trabalho traz quinze faixas e a produção dividida entre Julinho Teixeira e Líber Gadelha. Karla se lança como compositora e assina as letras de seis das canções ao lado de parceiros como Hyldon, Perinho Santana e Rildo Hora. A cantora possui uma voz de timbre bonito e grande extensão e se sai bem em temas complexos como “Mal Secreto” (de Jards Macalé e Wally Salomão) e “Brasil, 500 Sambas” (de Moraes Moreira e Tavinho Paes). Luiz Melodia é o convidado especial da faixa “Metade com Metade”, mas os melhores momentos ficam por conta de “Menina de Rua” e das releituras de “Nem Vem Que Não Tem” (de Carlos Imperial) e “Sem Você” (de Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes).

 

·                     A banda carioca Gurus está lançando seu terceiro CD (“Evolução”), o qual conta com a participação de Herbert Vianna (cantando e tocando guitarra) em “A Vida É um Presente”, uma das doze faixas do repertório.

 

·                     Para não deixar passar em branco as duas décadas que Luiz Gonzaga nos deixou, os compositores Jota Velloso e Gereba Barreto estão atualmente produzindo, de maneira independente, um álbum-tributo que contará com registros inéditos nas vozes de Lenine, Margareth Menezes, Elba Ramalho e Mariene de Castro, entre outros.

 

·                     O quinto CD que Marcos Valle gravou para o selo inglês Far Out Recordings trará duas parcerias inéditas dele com Marcelo Camelo (“Vamos Sambar” e “Eu Vou”). Os fãs de ambos já aguardam ansiosos a chegada do disco no Brasil…

 

·                     O pianista e sanfoneiro Marcelo Caldi, músico de primeira categoria, lança seu novo CD através da gravadora MP,B. Diferentemente do anterior (“Nesse Tempo”) que foi quase todo instrumental, o disco recém-lançado (“Cantado”) traz treze faixas, onze das quais cantadas pelo próprio artista que se revela um bom intérprete com timbre interessante que, por vezes, lembra o de Francis Hime. O álbum desce redondo e é muito bem produzido. De tessitura bastante alegre, possui sua base musical fincada nos ritmos nordestinos. Dentre os destaques estão as faixas “Espinheiras”, “O Sanfoneiro”, “Guerra é Guerra” e “Nem Parecia”. Há as participações especiais de Elza Soares e Rodrigo Maranhão.

 

·                     Ivan Lins planeja lançar em 2010 um álbum repleto de parcerias inéditas com Vitor Martins que, ao seu lado, já produziu sucessos como “Começar de Novo”, “Desesperar Jamais”, “Novo Tempo” e outros. Quem viver, ouvirá!

 

·                     Dominguinhos lançará em breve o projeto “Iluminado” que contempla CD e DVD nos quais surgem registrados os maiores sucessos da carreira desse irrepreensível artista que acaba de completar – pasmem! – sessenta anos de carreira.

 

·                     O SESC de São Paulo põe no mercado o CD “Cantos de Trabalho”. Trata-se de um rico painel de cantigas cantadas pelas trabalhadoras de alguns municípios do interior da Bahia, Alagoas, Minas Gerais e Sergipe e que foram garimpadas e executadas pela Companhia Cabelo de Maria, formada por Renata Mattar (também fundadora do grupo pernambucano Cumadre Florzinha) e Lucilene Silva (as duas responsáveis pelos belos e afinados vocais) e mais Gustavo Finkler (no violão e viola caipira) e Felipe Dias (no violino). Como auxílio luxuoso, ainda comparecem, na ficha técnica, Clara Bastos (no contrabaixo), Simone Soul (na percussão) e Adriana Holtz (no violoncelo). Gravado em 2007, somente agora o álbum efetivamente chega ao circuito comercial, trazendo a participação especial da cantora Ceumar (em “Semente da Mandioca” e “Sou Lavrador”) e das destaladeiras de fumo de Arapiraca. Dentre as músicas apresentadas, destacam-se “Coqueiro Verde”, “Eu Vou Queimar Carvão”, “Pisa Pilão” e “Que Tem Maria?”. O nosso Estado se faz representado pelas faixas “Pisa, Morena” e “Capim da Lagoa”, ambas colhidas junto às plantadoras de arroz de Própria.

 

 

RUBENS LISBOA é compositor e cantor


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