Bases Constitucionais da Justiça Gratuita – Parte III – A Hora e a Vez da Defensoria Pública

Na semana passada, afirmei que uma específica faceta da justiça gratuita é aquela que decorre da norma constitucional do Art. 5º, inciso LXXIV (“O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”).

Esse típico direito fundamental de dimensão prestacional[1] surgiu no constitucionalismo brasileiro, pela primeira vez, com a Constituição de 1934, que previu que “a União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando para esse efeito órgãos especiais e assegurando a isenção de emolumentos, custas e selos” (Art. 113, item 32). Tal direito também foi garantido pela Constituição de 1946: “O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados” (§ 35 do Art. 141), o que foi repetido, em termos de conteúdo, pela Constituição de 1967 (Art. 150, § 32) e pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969 (Art. 153, § 32).

Com efeito, parcela significativa da população, assim como não possui condições financeiras para arcar com o pagamento de despesas processuais, também não possui recursos financeiros para efetuar o pagamento dos honorários advocatícios do profissional liberal[2]. Essa circunstância, por si só, justifica e legitima a garantia constitucional de que estamos a cuidar, tendo como fundamentos maiores a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito.

É importante notar, porém, que a Constituição de 1988 ampliou a assistência a ser prestada pelo Estado aos necessitados.  Antes, era obrigação de o Estado fornecer assistência judiciária, ou seja, fornecer advogados para, gratuitamente, intentarem as ações judiciais cabíveis e aplicáveis a cada caso, ou efetuar em juízo as defesas necessárias, assim como o acompanhamento dos respectivos processos até o termo final.  Agora, com a Constituição de 1988, o Estado é obrigado a prestar aos necessitados assistência jurídica integral, o que é bem mais amplo, porque contempla não somente a assistência judiciária, mas contempla também atividades de consultoria, de elaboração de documentos, formalização de atos jurídicos e de contratos, prestação de informações e de orientações quanto aos direitos dos cidadãos de uma forma geral.  A atividade profissional do Direito, principalmente na área da advocacia, não se limita à militância forense, ao acompanhamento dos processos judiciais, abrangendo também atividades de consultoria, de mediação, de informação e de conscientização dos cidadãos.  Tome-se o exemplo de uma pessoa comprovadamente sem recursos financeiros para pagar os honorários de um advogado particular que quer efetuar a compra de um produto em um estabelecimento comercial e possui dúvidas atinentes aos seus direitos de consumidor: deve o Estado, conforme expressa imposição do inciso LXXIV do Art. 5º da Constituição Federal, fornecer a assistência jurídica necessária a fim de esclarecê-las.

Para dar vazão a tão elevados propósitos, a própria Constituição determina, em seu Art. 134, que essa assistência jurídica aos necessitados será prestada diretamente através de uma específica instituição, denominada “Defensoria Pública”.

E o que é a Defensoria Pública? É uma instituição, essencial à função jurisdicional, totalmente custeada e mantida pelo Estado, composta de defensores públicos (agentes públicos que ingressam nesses cargos mediante prévia aprovação em concurso público de provas e títulos) – a constituir uma carreira jurídica específica dentre os advogados.

Lamentável é constatar que, infelizmente, a estrutura das defensorias públicas em todo o país e também da Defensoria Pública do Estado de Sergipe é muito ruim, insuficiente para atender a demanda de toda a população que não possui condições financeiras de pagar custas processuais nem honorários de advogado particular. 

Os defensores públicos não são bem remunerados[3], não contam com estruturas mínimas para desenvolver o seu ofício, utilizam-se de equipamentos pessoais como instrumento de trabalho, praticamente não contam com servidores que possam auxiliar a contento o desempenho de suas tarefas. Mais ainda, são em número insuficiente para contemplar todo o país e todo o Estado de Sergipe, de forma que em diversos municípios simplesmente não há defensores públicos que possam prestar satisfatoriamente um serviço de assistência jurídica gratuita à população.

Registre-se mais que, desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, a Defensoria Pública – enquanto instituição essencial à função jurisdicional do Estado – goza de autonomia funcional e administrativa (Art. 134, § 2º), status constitucional incompatível com a sua atual inserção, em Sergipe e em outras unidades da Federação, como meras estruturas integrantes da organização básica da Administração Pública Estadual, submetidas ao controle político-administrativo do Chefe do Poder Executivo.[4]

Somente com autonomia – o que abrange autonomia funcional, administrativa e autonomia de sua proposta orçamentária dentro dos limites constitucionais e legais, mas sem dependência do Poder Executivo – é que a Defensoria Pública conseguirá se estruturar, valorizando os seus defensores públicos, prestigiando vocações e, sobretudo, assegurando efetivamente aos necessitados a assistência jurídica gratuita que a Constituição determina, como projeto de igualdade social.

É preciso compreender a Defensoria Pública como “instrumento de efetivação dos direitos humanos”, na linguagem do Supremo Tribunal Federal, e compreender a extrema relevância do trabalho social que a instituição desenvolve[5], incluindo a sua valorização e estruturação como política pública prioritária imposta pela Constituição Federal.

Do contrário, o acesso à justiça continuará sendo, na prática, direito de poucos, garantido efetivamente apenas aos que possuem poder sócio-econômico mais avantajado, inadmissível exclusão social que avilta a igualdade material e a dignidade da pessoa humana.



[1] Uma das classificações teóricas dos direitos fundamentais é a que os recorta em direitos fundamentais de defesa e direitos fundamentais a prestações, os primeiros a proteger as liberdades individuais e a autonomia de vontade, impondo limites ao Estado, e os segundos a exigir do Estado a prestação de utilidades à sociedade, com vistas à redução das diferenças sociais e à igualdade efetiva.

[2] O advogado militante, profissional liberal, tem nos honorários advocatícios a sua fonte de renda e, portanto, de sobrevivência.

[3] Sobretudo se compararmos a remuneração dos defensores públicos com a de outros profissionais de carreiras jurídicas públicas, a exemplo de magistrados, membros do Ministério Público e Procuradores do Estado, o que desestimula a permanência de profissionais na Defensoria Pública, que dela saem em busca de melhor valorização profissional, embora muitas vezes possuam vocação e ideal para o trabalho social que a Defensoria Pública realiza. Ressalte-se ainda que, por determinação constitucional, os defensores públicos não podem exercer a advocacia privada (o § 3º do Art. 134, ao mesmo passo em que lhes assegura a inamovibilidade, veda-lhes o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais) como fonte adicional de renda, ao contrário dos Procuradores do Estado, sobre os quais não incide qualquer proibição constitucional nesse sentido.

[4] Nesse sentido, registre-se recentíssima decisão do Supremo Tribunal Federal, que prestigiou esse novo status constitucional autonômico da Defensoria Pública enquanto instituição:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade: art. 2º, inciso IV, alínea c, da L. est. 12.755, de 22 de março de 2005, do Estado de Pernambuco, que estabelece a vinculação da Defensoria Pública estadual à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos: violação do art. 134, § 2º, da Constituição Federal, com a redação da EC 45/04: inconstitucionalidade declarada. A EC 45/04 outorgou expressamente autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais, além da iniciativa para a propositura de seus orçamentos (art. 134, § 2º): donde, ser inconstitucional a norma local que estabelece a vinculação da Defensoria Pública a Secretaria de Estado. A norma de autonomia inscrita no art. 134, § 2º, da Constituição Federal pela EC 45/04 é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, dado ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direitos humanos. Defensoria Pública: vinculação à Secretaria de Justiça, por força da LC est (PE) 20/98: revogação, dada a incompatibilidade com o novo texto constitucional. É da jurisprudência do Supremo Tribunal — malgrado o dissenso do Relator — que a antinomia entre norma ordinária anterior e a Constituição superveniente se resolve em mera revogação da primeira, a cuja declaração não se presta a ação direta. O mesmo raciocínio é aplicado quando, por força de emenda à Constituição, a lei ordinária ou complementar anterior se torna incompatível com o texto constitucional modificado: precedentes.” (ADI 3.569, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-4-07, DJ de 11-5-07)

[5] Como exemplo das inúmeras atribuições da Defensoria Pública de enorme importância para a sociedade podem ser mencionadas as de tentativa de conciliação prévia entre as partes em conflito (muitas vezes exitosa), notadamente na seara de direito de família, bem como o acompanhamento de ações judiciais como de separação judicial, divórcio, termos de guarda, inventários e partilhas, defesas em processos criminais.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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