Fragmentos II

Quero contar uma História com H maiúsculo, em que haja o real e a concretude de tudo o que existe. E para torná-la real, começo dizendo "em 1982, às tais horas do dia tal em tal cidade"… Pronto, já não tenho mais o que dizer. É só o real de dizer.

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Os pedaços que se encontram por aí, em cantos empoeirados da memória, da vida. Um pedaço atrás da cômoda, outro embaixo de uma pedra, na beira do rio, na estrada de volta pra casa, na estante de livros, no caderno de telefones. Fragmentos que se juntam, amontoam, sem nunca formar um, todo conexo, apenas um amontoado de pedaços velhos, mofados, com partes perdidas para sempre. Amontoado de velharias, pedaços de mim, se juntam e não há o que fazer com eles, na verdade, apenas observá-los impassivelmente, pacientemente.

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Às vezes tenho a necessidade de fazer as comparações sinestésicas mais absurdas, porque há uma alguma coisa lá dentro que não se traduz jamais. Aprendi diversas línguas buscando a exata palavra que diga a dimensão da ausência, mas essa palavra não existe. É só ausência mesmo, embora dizer isso seja muito pouco.

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Outro dia, sem mais nem pra que, me veio um súbito desespero: estou eu a andar pela vida sem cinto de segurança ou rede de proteção. "Viver é muito perigoso". E de uma hora pra outra é preciso saltar.

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Tá lá o mar imenso. Acaba o horizonte e não tem fim o mar. O céu se põe, acaba o dia. O mar não se põe nunca, é feito de infinitudes. Já se pensou que o mar se derramava na quina do mundo, já foi dogma o mundo ter uma quina. Hoje o mundo é redondo – ou quase – e o mar dá a volta até voltar para o mesmo lugar. Infinito é onde o humano não sabe chegar. É lá que mora o mar.

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Diz, a cobra dorme embaixo da cidade e sustenta a vida das pessoas e as coisas construídas. Diz, uma mulher muito sábia, uma anciã, com palavras mágicas e coração puro, um dia já sem memória adormeceu a serpente. Diz, um dia ela acordará, alçará a cidade aos céus, mas, diz também, haverá muita destruição. Diz, a cobra despertará para a salvação e a morte. Diz, assim diz a história sem começo nem fim.

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Foi assim. Um dia vi seus olhos, mágicos, cor de mel derramado. Seu rosto inteiro me olhava decidido, mas seus olhos vacilavam, sinceros e ansiosos. No fundo, lá no fundo de seus olhos, podia ler todas as mentiras que você me contaria um dia. E aceitei. Os seus olhos, suas mentiras e todo o conjunto em volta disso.

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Sentar ali, uma grama fria na tarde quente, sentir ainda um resto de umidade nas folhinhas verdes e observar o mar, as ondas que ainda veem e vão, a água verde quase transparente e um sol que aquece até a alma. Um dia bonito de céu muito azul e mar calmo, as ondas tranquilamente seguindo seu destino de arrebentar-se nas pedras. De repente, um susto de estar vivo. De estarmos vivos, respirando ainda e vendo o mar e as pedras. Dividir um sorriso simples e terno que é o reconhecimento de que estamos vivos e somos iguais. E de alguma forma, da nossa forma, somos felizes.

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Às vezes dá vergonha de sorrir, porque muita gente chora. Vergonha de sorrir, porque chove, porque a dor existe, porque alguém morre de fome. Não é possível ser feliz, talvez, porque há um mar de sofrimento humano. Ou talvez seja exatamente o contrário, e seja preciso sorrir para enfrentar a dor de quem sofre.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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