Imagens não fotografáveis

Imagem I

Era domingo e, por isso, haveria missa. Um domingo quente de verão cujo céu exibia um cinza chumbo premente de trovoadas. Suarenta, agastada de tanto calor e umidade, sentei-me num dos últimos bancos próximo a uma das portas laterais. A igreja ainda estava quase vazia, as mulheres de compridas saias e línguas iam chegando aos poucos, sempre em bandos, a reclamar do mau tempo e do calor. Fingi rezar orações esquecidas para que nenhuma delas viesse puxar conversa. Mas me distrai olhando o céu. Através da porta de vitrais aberta podia ver parte de um muro recém-pintado, uns pedaços de palhas de coqueiro que balançavam de tempos em tempos com a pouca brisa que lhes chegava e o resto era céu: cinza pesando sobre nossas cabeças, sufocando toda a vida. de repente chegou à porta uma negrinha metida em seu vestido de missa, com seu penteado de missa e seus sapatos novos. Escorou-se na porta aberta e me encarou. Sorri, mas ela permaneceu séria e saiu escorregando-se pelo canto da parede até sumir de minhas vistas por outra porta aberta próximo ao altar. Voltei a olhar o céu que parecia nunca mais chover, apesar de todas as nuvens de promessa. A menina passou em frente à porta pelo lado de fora, vinha de mãos dadas com uma amiguinha igualmente vestida e penteada para a missa de domingo. Me encararam sérias, curiosas. Olhei para elas sem sorrir e enxuguei o suor que já me brotava da testa. Passaram com cuidado pela porta e depois voltaram caminhando em sentido contrário ainda me observando. Da terceira vez, as duas pequenas já soltavam risinhos cúmplices aos cochichos. Mas antes que se demorassem demais na brincadeira, o céu decidiu-se a chover. Desabou de uma só vez, lavando todas as almas. Alguém acudiu a fechar a porta, e os vitrais choraram uma chuva fresca de verão.

Imagem II

O restaurante ainda estava quase vazio, as garçonetes conversavam distraídas entre as cadeiras brancas e laranjas. Vez ou outra soltavam risinhos abafados. Até que o dono chegou e todas afetaram uma seriedade ocupada um pouco cômica. Meus olhos descansaram na imensa vitrine em frente ao restaurante que deixava a luz e a confusão do trânsito e das pessoas ao meio dia entrarem naquele recinto asséptico quase hospitalar. Um imenso caminhão verde recortado sobre o céu azulzíssimo atrapalhava o trânsito de pessoas e carros e bicicletas displicentemente. Uma borboleta pousou no vidro cuidadosamente limpo e se esforçou para abrir passagem para o restaurante. Embora fosse difícil para ela vencer a barreira invisível, insistiu num bater de asas frenético. Quando cansou da luta inglória, pousou calma numa verticalidade poética e algo impossível. Nós duas paramos respirando fundo e descansando daquele esforço. Um menino passou correndo na calçada descalço, jogou as chinelas na porta do restaurante, calçou-as apressado e entrou. Estava assustado e, ao mesmo tempo, exultante, olhava para todos os lados, suado. Vestia uma camisa laranja como as cadeiras do restaurante e tinha os cabelos um pouco descoloridos nas pontas enroladinhas e aquele louro agressivo destoava de sua pele morena e seus olhos enormes. Todo o restaurante se pôs em alerta com aquele intruso: as cozinheiras por detrás do balcão, as garçonetes e a gerente que fazia contas ficaram alertas e quietas. Ao vê-lo, o dono deu um salto da cadeira em que estava sentado no meio do salão. Além de mim, só havia um outro comensal que afetou a calma indiferente de quem já viu muita coisa nesse mundo e nada lhe é estranho, mas seu nervosismo estava nas mão inquietas que não largavam o celular. Um homem chegou à porta do restaurante, era guardador de carros, vinha com uma flanela vermelha nas mãos e hesitou em entrar ao ver o dono parado próximo ao menino. Mas a fúria de encarar o garoto lhe deu coragem e ultrapassou a porta, investindo contra o outro. Os dois iniciaram uma discussão aos berros, mas era impossível entender o que diziam. O dono fazia gestos para que a caixa escondesse o dinheiro, mas ela, atônita, só olhava o mundo acontecer à sua volta. Falavam sobre um roubo, eu acho, um suposto roubo, uma suspeita, não sei. Berravam e não se entendia o que diziam. O dono falava baixinho para não espantar os clientes, “vão embora”, ele dizia, “aqui não é lugar”. O menino gritou com medo de uma agressão, eu acho. E o dono limitava-se a dizer-lhe “está bem, está bem, mas você não pode se esconder aqui”. “Saíam, saíam”, insistia assustado. Os dois gritavam entre si e eu não os entendia. Não sei o que os fez convencer a sair, mas saíram. Caminharam pela calçada, lado a lado, enquanto o homem fazia mil imprecações, o garoto gritava para toda a cidade ouvir: “Eu não tô robano mais!! Não tô mais!!”. Quando olhei de novo para a vitrine, a borboleta já tinha ido embora, espantada com a vida.

Imagem III

Era um dia bem comum, bobo. Fazia sol, como sempre, e isso é absolutamente desimportante. Tentávamos ser gentis um com o outro só para demonstrar nossa boa educação e urbanidade – em tempos de caras carrancudas, isso tem lá sua importância. Era uma dessas situações algo embaraçosas que exigem essa gentileza gratuita só porque dividimos inadvertidamente o mesmo espaço. Talvez estivéssemos no mesmo ponto de ônibus, no elevador, esperando numa longa fila de supermercado ou de consultório médico. Trocamos duas ou três frases sobre o tempo ou sobre a falta de tempo ou sobre a Dilma ou sobre nada. Ao final das minhas frases protocolares, sorri com esse meu jeito meio aparvalhado de quem se esforça para ser gentil. E ele sorriu de volta com a doce condescendência de quem entende o mundo. Um sorriso encantado, largo, quente e, ainda assim, suave. Eu, que sempre quis entender do mundo, fiquei tentando entender aquele sorriso – minha cara deve ter ficado ainda mais aparvalhada. Até que eu me bati em alguma coisa ou tropecei em mim mesma ou o ônibus chegou ou a fila acabou ou o elevador abriu. E desfez-se o encanto – embora eu tenha seguido encantada de alguma forma.

Imagem IV

Era cedo, o sol brincava ainda de brilhar num horizonte enevoado. Fazia um dia claro, calmo e havia silêncio por toda a parte. Chegamos quase solenes a um pedaço de terra indígena, espremido entre dois rios de águas límpidas e pedras escuras. Minhas botas pesadas e sujas de lama pisavam envergonhadas aquela manhã dura de verão, quase pedindo desculpas por atrapalhar a vida que seguiria muito mais tranquila sem a minha incômoda presença em terras tão sagradas e solenes. Pisava macio, medrosa, encabulada. Um indiozinho de meio metro parou a uns 50 metros de mim, olhou-me com displicência e desencanto. Não se demorou mais que alguns segundos em ver-me e voltou novamente sua atenção para um imenso copo de plástico que trazia nas mãos. Tentava ainda extrair-lhe algum líquido restoso do fundo, virava e revirava o copo, olhando com insistência faminta para o fundo vazio. Seguiu sua marcha quieto e silencioso, parando uma ou duas vezes para me encarar desinteressado. Depois desapareceu atrás de algum outro divertimento mais interessante. Meus olhos desesperados de novidade vagaram calmos pelas pequenas construções de taipa e palha espalhadas pelo terreiro de terra vermelha batida. Até se depararem com uma índia parada do lado de fora de uma janela, batendo um papo animado com alguém que a escutava de dentro da casa. Calçava botas pesadas como as minhas, umas calças pretas de malha mal dobradas até as canelas, um blusão grosso muito maior do que ela, um delicado lenço a prender-lhe os cabelos e aquele bendito artefato de palha que a ajudava a carregar todas as tranqueiras dos turistas para cima do monte. E havia nela uma beleza indescritível, guardada em algum lugar de sua pele avermelhada, de seus cabelos negros e compridos, de seus olhos negros e profundos. Ela me olhou de canto de olho, e só então percebi que eu, parada no meio do terreiro, a observava abobalhada, tentando descobrir segredos e histórias. Como eu me desconcertasse muito diante da minha própria falta de jeito, ela me encarou e sorriu um sorriso largo, mostrando todos os dentes, iluminando o rosto e a manhã. Retribui o sorriso, atabaolhada como sempre, e continuei meu caminho, antes que eu machucasse mais alguma flor.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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