Infâmia no litoral de Sergipe – 80 anos

Em agosto de 1942, o império nazista estava no auge e os Estados Unidos haviam entrado na guerra após o ataque

Navio Aníbal Benévolo tinha como destino Aracaju.

a Pearl Harbor, uma base americana no Pacífico. O governo brasileiro avançava para uma posição favorável aos aliados na Segunda Guerra e Hitler despacha seus submarinos para o Atlântico Sul, para as costas do Brasil, fugindo da ameaça americana. A ordem é para que promovam ações de sabotagem e torpedeamento dos principais portos brasileiros, visando impedir a rota de suprimentos e o deslocamento de tropas. Quando os submarinos já estão na região, esta ordem é estrategicamente suspensa. Mas eles não perdem a viagem.

Um deles aproxima-se perigosamente da gente. O submarino U-boat 507, comandado pelo Capitão-de-Corveta Harro Schacht, navegando no trajeto de Recife para Salvador, ao passar pelo litoral sul de Sergipe, ataca o navio mercante Baependi, nas proximidades da foz do Rio Real, que seguia de Salvador para Recife. O relógio marca 19 horas e doze minutos do dia 15 de agosto. Dois certeiros torpedos partidos do submarino acertam em cheio o alvo e afundam o navio em pouco minutos, ceifando a vida de duzentos e setenta pessoas, muitas delas mulheres e crianças. Somente trinta e quatro conseguem sobreviver, chegando exauridos à praia do Saco no transcorrer do dia seguinte, alguns deles agarrados aos destroços e a maioria apinhada no único bote que sobrou do naufrágio.

Minutos depois, o U-boat avista o navio Araraquara, que tem igual destino. Não tarda, na mesma rota vem o Aníbal Benévolo, este sim entraria no porto de Aracaju, proveniente do Rio de Janeiro, trazendo muitos sergipanos. Também vai a pique atingido por torpedos do U-507, por volta das 4 horas da madrugada do dia 16. Em suma, três navios são afundados, um atrás do outro, deixando grande número de mortos e náufragos, num espaço de apenas nove horas. A tragédia do Baependi é a maior entre todas as que se abatem sobre os navios brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial. Em nenhum outro torpedeamento há tantas vítimas. Somado os três navios afundados, o U-507 causa a morte de aproximadamente seiscentos brasileiros.

No dia 17, o coronel Augusto Maynard Gomes, interventor federal que governa o estado   toma o seu café da manhã em palácio quando é alertado por oficiais da marinha que o “Aníbal Benévolo”, que deveria chegar em Aracaju no dia anterior, não dera sinal de vida. Preocupado, aciona Walter Baptista, coordenador de um grupo de aviadores amadores que havia recebido do governador Eronides Carvalho um avião para o aeroclube de Sergipe, em 1939. Walter fazia voos de treinamento ao lado de outros pilotos amadores, entre eles Durval Maynard, Lindolfo Calazans, os irmãos Walfrido e Walter Rezende, Arivaldo Carvalho e Ewandro Freire, e quando a guerra se desloca para o Atlântico Sul passa também a vigiar as nossas praias, com incursões de reconhecimento pelo litoral sergipano, logo ao raiar do dia. Na época, o Aeroclube já contava com cinco teco-tecos.

Maynard pede a Walter que sobrevoe nossas praias na tentativa de descobrir o motivo do atraso do navio. As notícias de torpedeamento de navios brasileiros em rotas internacionais já eram conhecidas, mas ninguém imaginava que a guerra estivesse tão próxima. Ele chama Lourival Bomfim, médico e companheiro de aventuras, também aviador e juntos decolam. O que eles veem é desolador e sem ainda saber, são expectadores do fim de uma noite de tragédias e do início de um dia de lágrimas.

Corpos misturados a restos das embarcações, nas areias da praia, encontram mais de cinquenta. Até então não sabiam ao certo o que teria provocado a tragédia. O que poderia ter sido um inesperado naufrágio revela-se, porém, em uma tragédia. Walter e Lourival chegam a ver, do alto, pessoas saindo da água, cambaleantes, em trapos, feridas e ensanguentadas. Aterrisam o pequeno avião na areia da praia, prestam  os primeiros socorros e então ficam sabendo, atônitos, o motivo real do ocorrido. Entre os sobreviventes, o médico Viterbo Storry. No momento do ataque ao Baependi, ele conversava no convés com outro médico, o Dr. Zamir de Oliveira, que também sobreviveu. Ambos haviam sido nomeados para o Serviço Nacional da Peste em Pernambuco. Muitos feridos são levados a Estância, onde recebem atendimento no Hospital Amparo de Maria, graças à ação dos médicos Jessé Fontes, Clovis Franco, Pedro Soares, entre outros. Os feridos não param de chegar. Na praia os corpos inertes, sem vida, são enfileirados e para lá se dirigem forças policiais acompanhadas do Dr. Carlos de Menezes, médico legista que, com a ajuda do Dr. Aloysio Coutinho Neves, autopsia os cadáveres, descrevendo as lesões encontradas.

Os aviões do Aeroclube também pousam nas praias de Atalaia e do Mosqueiro, onde dezenas de corpos, trazidos pelo mar, perfilam um quadro dantesco e aterrorizador.

 

O médico Zamir de Oliveira, um dos poucos sobreviventes do Baependy

Os sergipanos, em estado de choque, agora com a grande guerra à porta, temem que ela se alastre por toda a cidade. Fazem treinamentos e à noite, com a cidade às escuras, recolhem-se aos seus lares. Com a fuga dos submarinos, a sensação de alívio é geral, não sem os traumas que levam a população ensandecida a promover tentativas de linchamento de imigrantes alemães e italianos.

Outros torpedeamentos ainda ocorrem na mesma rota destruidora do U-Boat 507. Em 17 de agosto, no litoral norte da Bahia, o Arará e o Itagiba são afundados pelo comandante Harro, resultando em mais cinquenta e seis mortes.

A tragédia no litoral sergipano desencadeia de pronto a reação do Governo brasileiro. Em 22 de agosto, o presidente Vargas reúne seu Ministério, que aprova por unanimidade a situação de beligerância entre o Brasil e as nações agressoras. Em 31 de agosto, finalmente, o Brasil declara guerra à Alemanha e à Itália.

Harro Schacht, carrasco dos navios mercantes brasileiros, não fica impune e é morto quando o U-507 afunda com toda a sua tripulação em 13 de janeiro de 1943 no Atlântico Sul, atingido por bombas de um avião americano Catalina.

Passados 80 anos do torpedeamento dos navios mercantes brasileiros nas costas de Sergipe e da Bahia, muita coisa ainda há por ser conhecida, como a própria razão dos ataques, a rota seguida por muitos sobreviventes até chegar a povoados e aos hospitais, principalmente o de Estância, o a questão dos “malafogados” pela ação de saqueadores e finalmente o perfil dos aviadores amadores civis que participaram do esforço de guerra.

O descaso e a ingratidão dos homens fazem com que esse episódio ao mesmo tempo épico e dramático seja desconhecido da maioria dos sergipanos. Entretanto, notícias auspiciosas aos poucos vão chegando, com os trabalhos de historiadores e pesquisadores vinculados às nossas universidades, além do surgimento do Grupo Sergipano de Estudos da FEB – Grusef – que vem empreendendo ampla discussão sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, com a realização de seminários e ações que visam edificar um Memorial dos Torpedeamentos e reverenciar as ações de sergipanos envolvidos na guerra.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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