O Gambito da Rainha e a Guerra Fria cultural

Adriana Mendonça Cunha

Doutoranda pelo PPGHCS/COC/FIOCRUZ

Mestra em educação (PPGED/UFS)

Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq)

E-mail: adriana@getempo.org

O Gambito da Rainha. Imagem: divulgação Netflix.

A série O Gambito da Rainha (Netflix) conquistou milhares de telespectadores em todo o mundo, tornando-se uma das produções mais assistidas de 2020. Além do enredo fascinante, da qualidade técnica e do magnetismo da protagonista, o seriado chamou atenção por ajudar a popularizar e estimular a busca por aulas de xadrez (G1, 10/12/2020).

Passando-se entre as décadas de 1950 e 1960, a obra apresenta a órfã Elizabeth Harmon que se torna uma campeã mundial de xadrez, um esporte dominado, quase que exclusivamente, por homens. Como pano fundo da trajetória de Harmon, temos representado um dos momentos históricos mais marcantes do século XX: o conflito travado entre EUA e URSS, conhecido como Guerra Fria. Mais especificamente, coloca em evidência a dimensão cultural dessa disputa.

Engana-se quem pensa que guerras são travadas apenas com uso de armas mortíferas. Num período marcado pelo domínio de bombas atômicas, a ciência, a cultura, e o esporte se tornaram peças-chaves na disputa entre as duas maiores potências globais. Assim como retratado em O Gambito da Rainha, na Guerra Fria, o xadrez se tornou também um campo de batalha entre URSS e EUA. Historicamente, os soviéticos saíram na frente nos campeonatos mundiais, marcados por vitórias de enxadristas como Garry Kasparov e Boris Spassky.

Na URSS, figuras como Kasparov e Spassky eram não só considerados heróis nacionais como seus êxitos no tabuleiro eram utilizados para demonstrar a superioridade intelectual soviética. Em 1972, o mundo parou para assistir à final entre Boris Spassky e o estadunidense Bobby Fisher, numa batalha que durou cerca de um mês e encerrou-se com a vitória estadunidense, representado, para os EUA, num símbolo do triunfo da democracia sobre o comunismo (Rei Branco e Rainha Vermelha de Boris Johnson, 2013).

O Gambito da Rainha não poderia vir em hora mais oportuna, quando vivenciamos uma disputa global pela vacina contra a covid-19 e, coincidentemente, os russos buscaram sair na frente na corrida pela produção do imunizante. Não menos interessante é o protagonismo feminino, num período e campo majoritariamente ocupados pelos homens. Uma cena marcante do seriado é o campeonato na URSS, quando Harmon se vê cercada de enxadristas homens, derrotando um a um e, ao sair do prédio, é ovacionada por dezenas de mulheres soviéticas.  Inspirador, não?!

Para além dos anacronismos e estereótipos, comuns numa obra que usa de acontecimentos históricos como pano de fundo para a arte, O Gambito da Rainha se consagra como uma das melhores séries de 2020. Nosso desejo é que 2021 nos traga não só a vacina, assim como mais equidade e empoderamento feminino.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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