O golpe institucional em curso

Se ainda havia dúvidas de que estamos a assistir, atônitos, a marcha contínua de um golpe institucional para deposição da Presidenta da República Dilma Roussef, sob a roupagem aparente de legalidade/constitucionalidade do mecanismo do impeachment, elas foram totalmente dissipadas desde a realização, no último domingo (17/04/2016), da sessão da Câmara dos Deputados que redundou na autorização para abertura, pelo Senado Federal, do processo por crime de responsabilidade.

Não que isso seja exatamente uma novidade na América Latina, como a deposição do Presidente do Paraguai Fernando Lugo em 2012 bem demonstrou e foi aqui analisada neste mesmo espaço da Infonet.

Com efeito, na sessão de domingo, a esmagadora maioria dos deputados proferiu o seu voto “sim” com fundamento em “Deus, Família e Pátria” e com fundamento genérico no “combate à corrupção”, no “passar o país a limpo”, na “crise econômica”, na “incompetência do governo”. Poucos se preocuparam em apontar – o que a denúncia em apreciação e o relatório da comissão especial até fizeram, ainda que deles se possa discordar – o voto favorável à autorização para abertura do processo tendo em vista viabilizar o processamento e o julgamento da Presidenta da República pela acusação de prática de crime de responsabilidade.

De lá pra cá, assistimos lideranças políticas que se mostraram significativamente majoritárias na votação de domingo falarem em convocação de novas eleições, eleições gerais, enfim, qualquer procedimento que implique a deposição do governo eleito em 2014, ao mesmo tempo em que há um completo abandono das discussões sobre se as apontadas “pedaladas fiscais” constituem mesmo crime de responsabilidade previsto na Constituição e na Lei nº 1.079/1950 suficientemente aptas para a deposição constitucional de Dilma Roussef pelo Senado Federal, por ocasião do eventual e provável julgamento de mérito que virá.

O que importa, e sempre foi o norte de atuação imposto pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (este já formalmente acusado da prática de crime comum, com denúncia recebida pelo Supremo Tribunal Federal e processo em andamento, inclusive com pedido de afastamento cautelar do cargo, para evitar que continue a dele se valer para manobrar e impedir apurações de procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, que podem resultar na cassação do seu mandato), com amplo respaldo em segmentos políticos derrotados nas eleições presidenciais de 2014 – ao qual aderiu o Vice-Presidente Michel Temer, eleito na mesma chapa de Dilma Roussef, e que já articula abertamente a formação de “seu” governo iminente – é a destituição do governo eleito.

Todavia, no sistema presidencialista adotado pela Constituição de 1988, Presidente da República somente pode perder o cargo em caso de condenação pela prática de crime comum (em processo de competência originária do Supremo Tribunal Federal) ou em caso de condenação pela prática de crime de responsabilidade (em processo de competência do Senado Federal), em qualquer hipótese exigida a prévia autorização da Câmara dos Deputados – pelo quorum qualificado de dois terços – para abertura do processo.

Ao contrário do que sucede no parlamentarismo, onde o Chefe de Governo somente se mantém no cargo enquanto conte com o apoio político da maioria parlamentar, no Presidencialismo, por mais que legítimas pressões populares forcem o Congresso Nacional a retirar o apoio político ao Presidente da República, isso não constitui hipótese de perda do cargo.

Era preciso, então, aglutinar legítimas insatisfações populares com o Governo – que reunia amplo leque de reclamações desde contra a adoção de políticas de supressão e restrição de direitos sociais negada pela candidata eleita na campanha vitoriosa do segundo turno da eleição de 2014, passando pelas queixas à imobilidade, paralisa e incompetência governamental ante o agravamento da crise econômica no Brasil, também reflexo da crise internacional, até a generalizada revolta com a má prestação de serviços públicos em geral e com a corrupção política – em torno de algum fundamento jurídico que pudesse ensejar a abertura de processo contra a Presidenta Dilma Roussef.

Como não havia – como de resto não há – qualquer indício mínimo ou apontamento de prática de crime comum por parte de Dilma Roussef, a única via para legitimar a sua deposição, sob aparência de legalidade/constitucionalidade, era a via do impeachment.

Iniciava-se a construção da tese – para a qual respeitáveis juristas emprestaram suas autoridades intelectuais de legitimação – segundo a qual os atos praticados por sucessivos Presidentes da República, desde Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva aos Governadores antigos e atuais de diversos estados brasileiros, além do Vice-Presidente Michel Temer quando no exercício da Presidência, denominados “pedaladas fiscais”, até então admitidos como válidos pelo Tribunal de Contas da União e nunca rejeitados pelo Congresso Nacional, configuravam “atentado contra a lei orçamentária” e por isso caracterizavam crime de responsabilidade, punível com a perda do cargo em processo de impeachment.

Em seguida, sabedores de que qualquer processo de impeachment somente segue adiante se houver legitimação popular, com movimentos populares apoiando ativamente a sua concretude, e de que para alcançar esse objetivo era preciso associar tais práticas ao universo maior e mais abrangente da “corrupção”, contando com o apoio entusiasmado de segmentos significativos da elite econômica nacional e dos grupos empresariais detentores de concessões de televisão e rádio, passaram a utilizar-se dessas estruturas para alcançar o objetivo almejado.

Nesse contexto, e no contexto da Operação Lava Jato, em catarse moralizadora e salvacionista, membros do Ministério Público e da magistratura adotam seletivamente medidas de exceção (infelizmente já adotadas no cotidiano, há muito tempo, vitimando segmentos periféricos da sociedade), com o evidente propósito de criar um ambiente de comoção nacional pela moralidade pública e que pudesse ensejar a revolta social e a legitimação final do processo de impeachment aberto em dezembro de 2015 pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, atendendo denúncia formulada pelos cidadãos – também juristas – Hélio Bicudo, Janaina Pascoal e Miguel Reale Júnior.

Foi então que, em março de 2016, ocorreram os três lances decisivos de uso da Operação Lava Jato para o fim de criar uma onda “pró-impeachment”: 1) vazamento da delação premiada do Senador Delcídio Amaral, quando ainda sequer havia sido homologada pelo Relator no STF, Ministro Teori Zavascki, mas apenas dos trechos em que incrimina o ex-Presidente Lula e a Presidenta Dilma; 2) condução coercitiva de Lula por agentes da Polícia Federal para prestar depoimento, sendo que não havia anteriormente se recusado a comparecer para prestar depoimento mediante regular notificação; 3) autorização para que fossem divulgados áudios de conversas telefônicas privadas entre a Presidenta Dilma e o ex-Presidente Lula, além de diversas outras conversas privadas do ex-Presidente Lula que não revelavam qualquer crime, a despeito de revelar diversas impropriedades de fisiologismo explícito nas práticas políticas e governamentais tradicionalmente utilizadas no país.

Estava criado o clima, e milhões de brasileiros foram às ruas no domingo, 13/03/2016, pedir o fim da corrupção e o impeachment de Dilma Roussef.

Àquela altura, já era possível arrematar, como aqui efetuado na coluna publicada em 23/03/2016: a escalada das medidas de exceção alcançava uso político-partidário, dentro da Operação Lava-Jato, para servir de escada ao impeachment, pouco importando o devido processo legal e o correto enquadramento de condutas da Presidenta Dilma Roussef em crimes de responsabilidade previstos no Art. 85 da Constituição e definidos na Lei nº 1.079/1950, sendo viável concluir que, nessa conjuntura, as ilegalidades cometidas pela Operação Lava-Jato eram deliberadamente projetadas para favorecer o ambiente político pró-impeachment, “legitimando” a deposição constitucional da Presidenta da República. Medidas de exceção cumulativas, para culminar com medida de exceção que rompe com o processo democrático-representativo, sob a aparência de legalidade institucional.

Esse golpe, revelado apenas para quem procure apreciar o que está a sua volta com devido senso crítico e percepção da reprodução de práticas históricas, não se faz sob a roupagem das armas e da força bruta militar, como em 1964. Mas se faz pela via institucional, mediante mecanismos genericamente previstos na constituição e nas leis, debaixo dos mesmos fundamentos políticos conservadores e reacionários de 1964.

A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de 1964 foi assistida por todos em cobertura televisiva ao vivo e a cores, em espetáculo deprimente de um circo de horrores, ao qual não faltou sequer a assunção da vitória golpista de 1964 agora repetida e mesmo a apologia da prática da tortura. O brado genérico contra a corrupção, com adesão acrítica de grande parte da população, esteve presente em 1964 e está presente agora, porque a meta, como em 1964, é depor o governo, como expressão de uma passagem do país a limpo e a preparação para o paraíso, a Terra Prometida, que a História já mostrou que por essa via não virá.

Também como após 1964 – quando segmentos civis e políticos que de início haviam apoiado o golpe militar, acreditando em suas “boas intenções”, ao perceber que não se tratava de movimento garantidor de democracia, mas sim ditadura com supressão de direitos individuais e liberdades públicas e políticas – setores da população que estavam até então apoiando sem qualquer ressalva o procedimento de impeachment começam a examinar com maior rigor o que se passa, após o espetáculo de despreparo, demagogia, oportunismo e reacionarismo revelado na sessão da Câmara dos Deputados do último domingo e o que se seguiu a ela até o momento, questionando-se para onde essa marcha poderá nos levar.

Finalmente, como em 1964, existem também setores da sociedade animados e dispostos à resistência democrática e à defesa da legalidade institucional, que garanta o respeito ao resultado da eleição popular de 2014, ainda que para fazer oposição legítima e para questionar os atos governamentais, dentro dos marcos da cidadania, para que eventual substituição do governo ocorra mediante regular processo eleitoral direto em 2018, como evidenciado em manifestações populares também significativas contra o impeachment em todo o país.

O resultado final desse jogo revelará o grau de amadurecimento institucional de nossa jovem e ainda não inteiramente consolidada democracia ou a consumação de um golpe institucional que traduzirá enorme retrocesso político de consequências absolutamente imprevisíveis.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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