O Supremo Tribunal em xeque

A atual semana é fértil em temas jurídicos do cotidiano para exame e comentários: audiência pública no STF para tratar dos limites e possibilidades do controle judicial de políticas públicas de saúde, queda da arrecadação dos municípios em decorrência da crise econômica, graves conflitos entre militares estaduais e o Governo do Estado, entre outros. Contudo, a análise contextualizada de um fato se impõe: a acirrada discussão entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, ocorrida durante a sessão plenária da última quarta-feira, 22/04/2009.

 

Com efeito, causou enorme repercussão esse forte embate, exibido ao vivo pela TV JUSTIÇA e posteriormente em todos os noticiários, bem como rapidamente disponibilizado na internet.

 

Por certo, não foi o primeiro áspero entrevero entre Ministros do STF acontecido em meio a alguma sessão. Acompanho pela TV JUSTIÇA as sessões do STF desde 2003 e recordo diversos outros embates ríspidos envolvendo os Ministros Nelson Jobim, Marco Aurélio, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Cezar Peluso e os mesmos Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. A maioria desses embates, porém, embora travados em tom acima do normal e do desejável numa Suprema Corte de Justiça, adstringiram-se ao campo das ideias, ao campo das interpretações jurídicas.

 

A “novidade”, no caso da quarta-feira passada, seria a discussão envolver ofensas e acusações recíprocas de caráter pessoal ou de atuação institucional ou comportamental de cada um dos Ministros. Não foi a primeira vez, mas foi certamente a que teve maior repercussão negativa. Esse peculiar aspecto, certamente, possui uma causa.

 

Longe de querer justificar o comportamento grosseiro, deselegante e descortês, altamente reprovável em qualquer circunstância, mas sobretudo quando partindo de magistrados da mais alta Corte de Justiça, o fato é que as contundentes afirmações do Ministro Joaquim Barbosa (“Vossa Excelência está destruindo a credibilidade da Justiça desse país”; “Vossa Excelência não está nas ruas, está na mídia”; “Vossa Excelência me respeite, não está tratando com seus capangas do Mato Grosso”) revelam desconforto com o ativismo midiático e protagonismo político exagerado do Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes.[1]

 

Embora a passagem do Ministro Nelson Jobim pela Presidência do STF (entre 2004 e 2006) já tenha sido representativa desse fenômeno, o exercício da presidência do STF pelo Ministro Gilmar Mendes tem sido marcado por pronunciamentos públicos constantes, incisivos e contundentes – muitas vezes em temas que ainda estão ou podem brevemente estar sob apreciação da Suprema Corte – em comportamento não usual ou heterodoxo para uma Corte de Justiça que deve primar pela moderação e equilíbrio.[2]

 

Registro aqui algumas dessas intervenções polêmicas do Presidente do STF no debate público: a) opinião contundente contra o que seria a ilegalidade contumaz de práticas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e, em conseqüência, a ilegalidade de repasse de recursos públicos a essa entidade; o Presidente da República disse que o Presidente do STF teria falado enquanto cidadão, no que foi imediatamente rebatido pelo Ministro Gilmar Mendes, que disse ter falado enquanto Presidente de um Poder, “Chefe do Poder Judiciário”; b) manifestação rotunda no sentido de que a concessão de refúgio ao italiano Cesare Battisti pelo Ministro da Justiça, Tarso Genro, poderia ser questionada e até mesmo revista pelo STF; c) a pomposa celebração de um “Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça Mais Acessível, Ágil e Efetivo” entre os Poderes, sendo que além de esse pacto não ter sido discutido previamente com o povo – como deveria ser, em se tratando de uma proposta autenticamente republicana – parece não ter sido fruto de consenso sequer entre os seus próprios pares; d) prévia condenação pública da Agência Brasileira de Inteligência (ABI) – órgão vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – pela realização de gravação clandestina de conversa telefônica sua mantida com o Senador Demóstenes Torres, fato que o levou a afirmar, em rede nacional de televisão, que seria o caso de chamar o Presidente da Repúblicas “às falas” (mais tarde, em sabatina promovida pelo jornal Folha de São Paulo, admitiu que o fato não ficara devidamente comprovado, mas que o conjunto de circunstâncias legitimara a pressuposição de que teria sido mesmo responsabilidade da ABIN); e) reiteradas e sucessivas críticas públicas ao comportamento de magistrados de primeira instância, em especial do Juiz Federal atuante no inquérito policial resultado da “Operação Satiagraha”, assim como ao Delegado inicialmente atuante no caso.

 

Sem deixar de fazer críticas pesadas à postura do Ministro Joaquim Barbosa (“O Ministro Joaquim extravasou o inimaginável. Todos nós ficamos perplexos com o grau de agressividade (…) O Ministro Joaquim vem demonstrando que às vezes perde os limites da razoabilidade. Isso é ruim”), o Ministro Marco Aurélio pontuou a necessidade de o Ministro Gilmar Mendes conter um pouco o ritmo intenso de sua atuação pública e intervencionista: “Talvez esteja na hora de tirar o pé do acelerador e buscar uma austeridade maior (…) Toda vez que se fustiga em muitas frentes também se fica na vitrine dos estilingues impiedosos (…) ele tem tido uma atuação ostensiva em vários campos, e isso implica a própria fragilização do Judiciário. A virtude está no meio”) (Folha de São Paulo, edição de sexta-feira, 24 de abril de 2009 – assinantes da Folha ou do UOL podem acessar em https://1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2404200908.htm).

 

Toda essa atuação pública e polêmica do Ministro Gilmar Mendes no exercício da presidência da Suprema Corte torna ainda mais agudo e questionável o recente ativismo judicial brasileiro e em especial do Supremo Tribunal Federal. O episódio da semana passada pode servir, no mínimo, a uma reflexão coletiva e a uma ponderação maior, em busca do necessário equilíbrio. Pode servir, também, para o amadurecimento da proposta de instituição de mandato para Ministros do STF.[3]

 

Não se deve aproveitar a ocasião para o “endeusamento” do Ministro Joaquim Barbosa, por este ter verbalizado institucionalmente – a meu sentir, de maneira extremamente inadequada – uma certa reação a esse comportamento heterodoxo do Ministro Gilmar Mendes na condução da Suprema Corte do Brasil.[4] Existem meios mais adequados e eficazes para tanto. O “sucesso” de popularidade de sua discussão acalorada com o Ministro Gilmar Mendes compromete a sobriedade que se deve exigir do Poder Judiciário e contribui para o seu descrédito. A disputa entre Ministros do STF não pode ser acompanhada pelo público com o mesmo tom apaixonado das disputas político-partidárias ou futebolísticas.

 

No confronto entre o errado e o errado, que prevaleça a prudência e a restauração do equilíbrio, de parte a parte. O Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário possuem relevantíssimas missões constitucionais inerentes ao Estado Democrático de Direito. Sua credibilidade não pode ficar em xeque.


[1] Tampouco se identifique nas declarações do Ministro Joaquim Barbosa (“capangas do Mato Grosso”) algum viés discriminatório em razão do estado de origem. Aqui, permito-me discordar do meu dileto amigo pessoal e colega advogado José Rollemberg Leite Neto que, em artigo publicado no “Jornal do Dia”, edição de domingo – 26/04/2008 (“O aplauso dos fanáticos”), enxergou nessa expressões um tratamento desrespeitoso do Ministro Joaquim Barbosa para com os matogrossenses. Tratou-se, ali, de alusão a densa reportagem da revista Carta Capital, publicada em novembro do ano ano passado, na qual foi efetuada denúncia de um suposto domínio coronelista da família de Gilmar Mendes em Diamantino/MT (denúncia que não pode ser considerada como verdade absoluta, mas que, como toda denúncia, merece investigação e apuração). Tanto que, em editorial da mesma revista, na edição desta semana, seu editor Mino Carta desabafou: “E no momento em que Barbosa invectiva, ‘Vossa Excelência quando se dirige a mim não está falando com seus capangas do Mato Grosso’, não me contive e anunciei aos meus espantados botões: o ministro lê Carta Capital. E mais: dispõe-se a repercutir as informações da revista, ao contrário da mídia nativa, obediente à omertà conveniente ao poder”.

[2] Oscar Vilhena Vieira, professor da Fundação Getúlio Vargas, aponta que “Gilmar Mendes é um ponto fora da curva em relação aos anteriores. O Nelson Jobim tinha certa exposição, mas Ellen Gracie, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence foram discretos. A tradição é de uma certa discrição. O velho jargão no direito é: o juiz fala no processo”. José Reinaldo Lopes, professor da USP, afirma que “Mendes não deveria se manifestar sobre temas que potencialmente chegarão ao Supremo, já que o tribunal teve poderes ampliados e pode ser chamado a julgar assuntos de interesse público (…) O STF tem o poder extraordinário de, em última instância, definir as regras do jogo, mas em contrapartida não pode ter a iniciativa ou participar ativamente do jogo” (Folha de São Paulo, edição de 25 de abril de 2009 – “Mendes foge do padrão, dizem estudiosos”; assinantes da Folha ou do UOL podem acessar a matéria completa em https://1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2504200912.htm). 

[3] Objeto de comentário nosso em 13/01/2009, a conferir em https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=81472&titulo=mauriciomonteiro.

[4] Não é a primeira vez que o Ministro Joaquim Barbosa se excede na retórica e se envolve em polêmicas com colegas (o que, frise-se, não é exclusividade dele). No Tribunal Superior Eleitoral, em plena sessão, chegou a qualificar o voto fundamentado do colega Ministro Arnaldo Versiani de “absurdo”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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