Saudade

Vem silenciosa, vento sul a traz, entra pela janela e se instala, olhos postos no horizonte, esperando sempre alguma coisa que não chega. Um dia ganhei a saudade, palavra dada ao acaso e sem cuidado por um certo rapazito, amor que me deu e nunca passou. Amor, cravo encravado, com o tempo virou outra coisa, sentimento sem nome, mas que ainda assim é amor. Saudade ficou, pra sempre fica. É o que do amor eu retive. Saudade palavra pesando na minha mão, um comichão esquisito no peito.

Saudade, carta antiga meio mofada que achei outro dia numa caixa de papelão, tinha uns desenhos engraçados e contava umas histórias que eu quase já tinha esquecido. Tempos que se perderam das pessoas de quem nunca desisti. Pedaço de história, pedaço de papel, um cartão, uma foto, uma anotação no guardanapo, uma tira de pano, fita de cetim, um sonho esfumaçado, uma luz que acende durante a noite. Junta tudo até virar um altar: saudade é ao mesmo tempo tudo o que falta e tudo o que restou.

Saudade são os amigos de uma vida toda, morando lá longe, fotos na parede, vou tirando a poeira enquanto a gente fala ao telefone. “E as crianças, como estão?”. Um chorinho de bebê me lembrando que já faz tantos anos. “Se mudam quando, meu amor? Vou visitar mais vocês”. E já não é mais um, é no plural, casamento, uma amiga a mais, saudade pra acrescentar na parede. “Me mande notícias suas!”. Uma tem uma casa nova, uma cozinha vermelha, mas ainda não tem cama e me espera pra uma festa do pijama, a outra arrumou emprego, diz que tem saudades e, quando der, vem me ver. E vou empilhando memórias, contando dias e histórias.

Saudade parece dor de dente, de noite aperta o peito mais forte e rouba o ar de respirar. Foto escondida numa caixa no fundo do guarda-roupa pra espantar tristeza, como se memória fosse coisa de fora da gente. Amores que deixamos pelo caminho, sonhos a dois que viraram solidão ao final, um cheiro, um livro, um verso. Li esses dias, poeta quem escreveu, uma carta ao desamor, palavras de despedida, me encheu os olhos d’água de todas as vezes que eu fui embora ou vi a porta se fechar. Um pedaço de cada um, guardado num canto aquecido do coração, lembrando.

Saudade, eu acho, não é pelo que se acabou, mas pelo tempo em que foi bom. É um jeito muito humano de se insurgir contra a lei natural das coisas: tudo passa. Mas a gente rouba alguma coisa do que passou pra ficar, pra guardar pra sempre um sentimento que é bom e é ruim ao mesmo tempo. Uma vez me enrolei muito numa língua estrangeira pra explicar saudades. E bem sei eu que elas mal se explicam em português.

Saudade, aquela música que toca, aquele cheiro que passa, aquela mordida numa madeleine que te leva pra outro tempo, outro lugar. É também de um tempo que se sente falta, de um lugar que ficou preso na memória e, de fato, já nem existe mais. O curral caiu, o açude secou, as plantas já são outras, as pessoas envelheceram ou sumiram, a cidade já não é mais, embora ainda seja. O tempo se perdeu no tempo. Tudo o que havia lá, ficou preso só na memória: os brinquedos, as casas, as gentes, os costumes. Tudo morto, embora ainda muito vivos dentro de mim.

Saudade é tempo que deu e passou. É gente que veio e já foi. É uma montanha que eu subi e me maravilhei, é a sensação da mão acariciando a pedra fria, uma cachoeira escondida onde cheguei depois de dura caminhada, é pé descalço na trilha forrada de folha seca, ouvindo o canto dos pássaros e a água descendo em algum lugar ali perto. Um chimarrão cheio de mágoa na beira da cachoeira, uma caminhada silenciosa ao lado de dois cabocos amados. Um sorriso de uma criança que eu não conheci, uma dança concedida a um rapazinho de quem já não me lembro sequer o rosto, uma noite de conversa com um novo melhor amigo que amanheceu o dia, abrir os braços no meio da noite e gritar. Saudades são pedacinhos de coisas boas, as melhores memórias de um tempo que se perdeu, de uma coisa que se acabou.

Saudade nasce antes do tempo também. E eu já vou tendo saudade de você que ainda nem embarcou e me marejou os olhos. Já vou sentindo falta de todas as nossas intermináveis conversas sobre a vida e o imponderável, sobre nossos amores e desilusões, sobre crescer num mundo tão estranho. Saudade já doendo de não te ver por perto e não poder receber um abraço e uma palavra querida na hora mais necessária, de rir até doer a barriga das nossas tolices e piadas bobas. Sua foto já na parede, ganhando espaço na galeria dos que, mesmo longe, estão pra sempre em meu coração. Aliás, irmãzinha, longe é um lugar que não existe, não é mesmo? Saudade não conhece medida de espaço e de tempo, guarda tudo num presente eterno do que se foi. E foi muito bem vivido, obrigada.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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