“Vendo ou Transo”: Os Classificados da Revista Rolling Stone em 1970

Talita Emily Fontes

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/COC/Fiocruz)

Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET / UFS)

E-mail: talifontes.20@gmail.com

Gal Costa na capa da Rolling Stone Brasil nº Zero, 1971. Fonte: Jornal do Commercio https://bit.ly/3aQmxvn

Certa feita, um grande historiador apaixonado pelo trabalho em arquivos relatou que uma das fendas reveladoras do passado está no momento em que o pesquisador se depara, durante a análise dos documentos, com uma expressão, uma gíria ou um provérbio que não consegue entender. Esse estranhamento faz com que o historiador perceba que as mulheres e os homens do passado são como estrangeiros, e que esse momento de incompreensão é o choque necessário que possibilita a interpretação desse “mundo diferente”.

É esse sentimento de incompreensão que desperta a curiosidade de quem, nos dias de hoje, se vê folheando a coluna Classificados de Graça da Revista Rolling Stone dos anos 1970. Entre seções de discos, entrevistas e horóscopo, escorregamos na seguinte chamada: “Estou a fim de transar uma num grupo de arte dramática (undergroud) em Brasília City. Maria.”. Um pouco mais abaixo, encontramos: “Saca só: saímos da estrada, foi um transdesbunde pelo ‘Florão da América’. Agora voltamos às raízes, mas estamos nus”.

Em cada edição da revista, podemos ver uma multiplicidade de anúncios que, para nós, situados algumas décadas à frente, nos parecem inusitados. Encontramos “jovens desbundados” à procura de parceiros para formar uma banda; outros tantos em busca de um emprego no meio artístico, ou companheiros para “dar um pinote” pelo Brasil ou pelo mundo afora. São comuns chamadas para “transas” e vendas de LP’s, fitas k7 e itens dos mais variados; e até mesmo um paulista anunciando que possuía um boné perdido do John Lennon. Outro tipo de anúncio constante é o de jovens que simplesmente gostariam de formar novas amizades com gente de “cuca sadia”.

Entre as várias perguntas que esses anúncios despertam, uma primeira afirmação que podemos captar diz respeito à efervescência cultural existente nos anos 1970 e o quanto esses movimentos influenciaram a juventude.  Estudiosos do Desbunde no Brasil apontam para a importância da chegada da Revista Rolling Stone para a circulação de novas ideias em solo tropical. De modo geral, essa publicação é uma preciosidade para quem tem interesse na cultura alternativa nacional e internacional desse período. Em suas capas e pôsteres, desfilaram as mais variadas personalidades, que iam de de Gal Costa a David Bowie, bem como Caetano Veloso, Iggy Pop, Rita Lee e Angela Davis.

Sob o comando de Luiz Carlos Maciel, a revista circulou entre os anos de 1971 a 1973. Unida a O Pasquim e outras publicações, essa fase é considerada a época de ouro da imprensa alternativa brasileira. Junto à indústria musical, ambos foram instrumentos essenciais para a disseminação de moda, costumes e hábitos para a juventude que se opunha à ordem tradicional ditada pelo Regime Militar (1964 – 1985).

Por sua vez, a Classificados de Graça era um dos meios que o público da revista encontrou para interagir, estabelecer contato, conhecer novas pessoas e ter acesso ao que havia de novo no campo artístico e cultural. Acostumados com a facilidade que os aplicativos e as redes sociais hoje nos oferecem, provoca estranheza imaginar pessoas que utilizavam uma coluna de classificados para fazer amizades ou conseguir o álbum de sua banda favorita.

Em meio a esse universo “transante” que foram os anos 1970 no Brasil, somos levados a concordar que o passado pode ser realmente comparado a “um país estrangeiro”. A Classificados de Graça é apenas um exemplo de como pequenos detalhes podem se tornar fios condutores para um mundo que nos parece familiar, mas que possui uma lógica muito distinta das que vivenciamos nos nossos dias.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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