A UFS nunca se dobrou ao arbítrio

Nunca se falou tanto em autonomia universitária. Pelo menos desde que o Brasil voltou a ser um país democrático. É uma discussão que nem deveria mais existir, porque a autonomia é um direito historicamente fixado na personalidade das universidades e existe para que essas instituições milenares possam cumprir, de modo autônomo e independente, a sua genuína e indispensável finalidade.

Há quem defenda que a autonomia das universidades precede à própria noção de Estado. É certo que são organizações das mais antigas e a primeira universidade reconhecida como tal, que fica no Marrocos, existe desde o século IX.

O constituinte de 1988 teve o cuidado de reforçar esse caráter e escreveu na Constituição do Brasil, em seu artigo 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Mas quando formalmente nasceu, 20 anos antes da promulgação da Carta Política, a Universidade Federal de Sergipe já deixava registro de que faria valer a tradição.  O primeiro reitor da UFS, o médico e professor João Cardoso Nascimento Júnior, foi empossado na efervescência do ano de 1968. Em plena ditadura, sua gestão de quatro anos ficou marcada pela defesa da autonomia e contra o arbítrio.

A representação estudantil deixou de ser acéfala desde o início da gestão, em maio daquele ano. O reitor comparecia às inaugurações dos diretórios acadêmicos e fazia questão de convidar à mesa o presidente do DCE em todas as formaturas, mesmo que desagradando às forças conservadoras.

Quando o presidente Costa e Silva decretou o AI-5 e a repressão tornou-se mais dura, o movimento estudantil sofreu o mais duro golpe, porque era uma das principais forças opositoras ao regime ditatorial e tinha como bandeira também a oposição à política educacional do governo, de tendência privatista. Coincidência?

Estudantes começaram a ser presos, principalmente aqueles que participaram do congresso clandestino da UNE em Ibiúna, no interior de São Paulo, e professores também foram “convidados” a comparecer ao 28º BC. Mas mesmo sob severa pressão militar, João Cardoso não cassou o direito estudantil de nenhum dos 32 estudantes apontados como subversivos e que deveriam ser expulsos da UFS por ordem da 6ª Região Militar.

Se o reitor não fosse sobretudo um defensor da autonomia universitária, a história de Sergipe poderia ficar desfalcada dessas figuras que cresceram nas salas e corredores da universidade: Jackson Barreto de Lima, que viria a ser vereador, deputado estadual, deputado federal, prefeito de Aracaju e governador; João Augusto Gama da Silva, prefeito de Aracaju; Benedito Figueiredo, deputado federal e vice-governador; José Anderson Nascimento, juiz de direito e presidente da Academia Sergipana de Letras; Moacyr Soares da Mota, procurador de Justiça; Wellington Dantas Mangueira Marques, advogado e militante dos direitos humanos; Dilson Menezes Barreto, economista; João Bosco Rollemberg Côrtes, assistente social, artista plástico e militante dos direitos humanos; Ilma Mendes Fontes, médica, jornalista e poeta; José Alves Nascimento, médico e ex-senador; Laura Tourinho Ribeiro, militante dos direitos humanos; e o poeta Mário Jorge de Menezes Vieira.

Ação jurídica e política

Hoje, 52 anos depois, a autonomia da Universidade Federal de Sergipe volta a ser atacada. E, ao contrário do caráter democrático do reitor de 1968, agora a reitora é uma interventora, indicada pelo Ministério da Educação para administrar um hipotético regime de exceção.

Há forte reação interna e manifestações externas de apoio à volta da normalidade democrática. A Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe defende que o processo de escolha seja em observância ao princípio da autonomia universitária e em respeito à lista tríplice. A seccional está ciente de que toda a situação também está sendo acompanhada pelo Ministério Público Federal.

O MPF, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, instaurou um inquérito civil para apurar eventual ofensa ao princípio da autonomia universitária no processo de escolha do novo reitor e encaminhou ofícios que requisitam ao MEC e à reitoria pro tempore que informem os fundamentos que justificam a não conclusão do processo de escolha do novo reitor e a eventual realização de novas eleições. Não se tem notícia de tais informações.

Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6565), protocolada pelo Partido Verde, que busca garantir que o governo respeite as normas legais ao nomear reitores e vice-reitores de universidades federais. O relator Edson Fachin se posicionou pela obrigatoriedade do respeito à lista tríplice – conforme disposto na Constituição Federal.

Os ministros Celso de Mello e Cármen Lúcia também votaram a favor da autonomia e contra a intervenção nas instituições. O prazo final para conclusão do julgamento é até o próximo dia 19 e são necessários seis votos favoráveis.

Também foi ajuizada no STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 759) sobre o mesmo tema. Nesse caso, o Conselho Federal da OAB pede que sejam anuladas todas as nomeações que não tenham respeitado o primeiro nome da lista, em respeito aos princípios constitucionais da gestão democrática, do republicanismo, do pluralismo político e da autonomia universitária.

Dos 19 casos em que a nomeação é considerada arbitrária, sete são reitores pro tempore, que sequer disputaram a eleição e cujos nomes não integram as listas tríplices encaminhadas ao MEC, incluindo a da UFS.

Também estão envolvidas na defesa da autonomia universitária a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe), o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), a Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Federação Nacional dos Estudantes em Ensino Técnico (Fenet).

Os políticos sergipanos também estão se envolvendo nessa luta em defesa da UFS. Muitos deles devem parte de sua formação à universidade e todos, mesmo os que não estudaram lá, sempre deram demonstração de que acreditam na instituição. Os deputados federais e senadores, por exemplo, garantiram obras fundamentais no processo de expansão e interiorização da UFS, assegurando emendas parlamentares que permitiram, por exemplo, a realização do Campus do Sertão e da unidade Materno-Infantil do Campus da Saúde, em Aracaju.

A defesa da autonomia universitária e a legitimidade do processo de escolha da lista tríplice, reconhecida pela Justiça Federal e pelo MPF, são vitais para a manutenção do sucesso da universidade que hoje, 52 anos depois de muita luta no campo democrático, se destaca entre as melhores do Brasil.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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