Impeachment, medidas de exceção e Estado Policial

Nas últimas semanas, a crise política tem atingido patamares elevadíssimos.

Em meio a um procedimento de impeachment da Presidenta da República, Dilma Roussef, envolvendo manifestações populares significativas por parte de apoiadores do impeachment (como a realizada no domingo, 13/03) e por parte de contrários ao impeachment (como a realizada na sexta, 18/03), é possível perceber o avanço cada vez mais paulatino e crescente de medidas de exceção que, dentro do Estado de Direito formal, rompem com o regime de garantias e liberdades públicas e individuais e com as conquistas democráticas da cidadania.

Vladimir Safatle, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo na data de 15/07/2014, bem advertiu :

Não serei o primeiro a lembrar que, dentre os vários legados da Copa do Mundo, um dos mais duradouros será certamente a ampliação da zona de suspensão de direitos. O Brasil já era conhecido por seu histórico de violência policial, de desrespeito aos direitos civis e pela proximidade entre bandidos e a polícia. Nesta Copa do Mundo, a despeito da segurança contra manifestações políticas, tal processo chegou muito próximo da perfeição.
(…)
O problema, como costumava dizer o filósofo italiano Giorgio Agamben, é que práticas de exceção, quando aparecem devido a situações, digamos, excepcionais (como Copas, Olimpíadas, uma invasão de argentinos, guerras ou catástrofes naturais) não desaparecem mais. Elas vão se tornando uma espécie de jurisprudência muda, que pode existir nas entrelinhas, sem precisarem ser claramente enunciadas para serem efetivamente seguidas.”
(grifou-se).

A advertência de Vladimir Safatle quanto à extrema dificuldade de fazer desaparecer essas situações “excepcionais” bem se justifica.

Na verdade, embora esse “estado de exceção” mudo e silencioso, próprio de democracias capitalistas, tenha mesmo alcançado um perigoso ponto culminante com a repressão aos protestos durante a Copa do Mundo (em especial, a repressão ao protesto no Rio de Janeiro, por ocasião da partida final entre Alemanha e Argentina em 13/07/2014), podemos constatar – e com muita apreensão – que essas práticas vêm se arrastando ao longo dos últimos vinte e sete anos, tensionando contra a inteira consolidação de nosso processo de redemocratização pós-constituinte de 1987/1988 e avançando paulatinamente aproveitando-se das brechas ainda não supridas em nossa longa  transição “lenta, gradual e segura” projetada pela ditadura militar.

Esse paulatino avanço de práticas de exceção é constatado em várias frentes:

– inconstitucional e abusiva utilização das Forças Armadas para atuação em policiamento ostensivo (o que aqui já comentamos em vários textos: “Sistema Constitucional de Crises”, de 01/12/2010; “Forças Armadas e Segurança Pública”, de 09/02/2011; “Forças Armadas e Segurança Pública: subsidiariedade!”, de 26/03/2014; “Indignações seletivas por discriminação de classe”, de 02/04/2014);

– sistemáticas e reiteradas restrições e suspensões de direitos fundamentais (a exemplo da inviolabilidade domiciliar, liberdade de locomoção) de moradores de comunidades periféricas, legitimadas a pretexto do combate ao crime organizado, tratando a todos os moradores, indistintamente, como presumivelmente culpados (o que também foi objeto de comentário nosso aqui em “Indignações seletivas por discriminação de classe”, de 02/04/2014 e “Indignações seletivas”, de 17/08/2011);

– prisões temporárias sem individualização de condutas e sem explicitação dos fatos que a legitimam; custódia com base em eventos futuros e incertos; prisão indiscriminada de advogados sob o fundamento de associação criminosa aos seus clientes; relativização da presunção de inocência;

– procedimentos cíclicos de criminalização de movimentos sociais, com amplas campanhas publicitárias e de mídia que procuram passar para a sociedade a distorcida ideia de que todos os que se mobilizam legitimamente – em mobilizações políticas que vão desde o singelo exercício da liberdade de manifestação do pensamento, passando pela liberdade de associação e de reunião em locais abertos ao público até o exercício do direito de greve – são “vândalos” ou “criminosos”. Tais procedimentos desembocaram em projetos de lei que procuram definir juridicamente o crime de “terrorismo” com nítida inspiração ideológica na Lei de Segurança Nacional – utilizada pela ditadura militar para coibir manifestações dissonantes e reprimir movimentos sociais e opositores políticos – e projetos de lei que pretendem regular o exercício da liberdade de reunião em locais abertos ao público, com nítido propósito cerceador de protestos e manifestações (o que também comentamos aqui, em “Criminalização dos protestos e retrocesso na democracia”, de 19/02/2014).

Sobre esse último item, por sinal, lamentável perceber que o Congresso Nacional concluiu a votação do mencionado projeto de lei e, em meio ao turbilhão político da semana passada, a Presidenta da República, Dilma Roussef, sancionou o que se tornou a Lei nº 11.260, de 16 de março de 2016, que “Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis nos 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013”, fazendo-o mediante tipos penais abertos que bem servirão, no amplo contexto das medidas de exceção e do Estado Policial em curso, para o enquadramento de legítimos movimentos sociais como se fossem movimentos terroristas (a despeito de o § 2º do Art. 2º estabelecer que “o disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”), a exemplo da execração pública e persecução criminal a que foram submetidos tantos que se insurgiram legitimamente contra os gastos abusivos e as medidas elitistas a propósito da realização, no Brasil, dos eventos Copa das Confederações (2013) e Copa do Mundo (2014) organizados pela FIFA. O Brasil não precisa de uma lei penal com tipos abertos para combater terrorismo, possuindo em sua legislação tipos penais bem definidos que podem muito bem enquadrar condutas terroristas que porventura venham a ser por aqui praticadas.

É verdade que a violação cotidiana das citadas garantias em relação às camadas periféricas da população já ocorre há muito tempo (violação domiciliar sem ordem judicial, exposição de imagem como se culpados fossem sobre quem recai apenas suspeita e investigação, prisão cautelar sem presença dos pressupostos legais autorizadores, restrições indevidas ao direito de ir e vir, relativização da presunção de inocência); o que se assiste agora é a projeção dessas violações no contexto da luta política travada e com evidentes propósitos de influenciar o ambiente pró-impeachment.

Com efeito, é exatamente o que sucede com o modus operandi da “Operação Lava-Jato”. Embora de fundamental importância para o combate à corrupção – desnudando a sua lógica político-econômica, com esquemas que envolvem grandes empreiteiras financiadoras de campanhas eleitorais e que obtêm, em troca, favores em forma de contratos de entes públicos em grandes estatais, a exemplo da Petrobrás – o fato é que seus procedimentos, em especial nas últimas semanas, descambaram para graves ofensas ao devido processo legal, tudo para criar um ambiente político ainda mais favorável ao impeachment. Investigações baseadas exclusivamente em delações premiadas, vazamento à imprensa de depoimentos sigilosos, condução coercitiva sem prévia recusa a comparecimento mediante notificação, estardalhaço midiático como estratégia processual, autorização para divulgar áudio que por lei deve ser mantido sob sigilo porque oriundo de interceptação telefônica, interceptação telefônica de advogados no legítimo exercício de suas atuações de defesa, esse modus operandi da Lava Jato é claramente ofensivo ao Estado Democrático de Direito.

É possível investigar, processar e punir com observância do devido processo legal, mas não é essa a opção da Lava Jato, como o ato judicial de liberar o áudio de conversa telefônica entre a Presidenta da República e o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva bem revela, assim também a liberação geral de áudios decorrentes de interceptações telefônicas efetuadas com ordem judicial, mas cujos trechos não revelam qualquer crime (ainda que revelem impropriedades políticas e de postura) bem como devassam a intimidade de conversas estritamente pessoais do nosso cotidiano. A opção é pelos fins justificarem os meios, com amplo apoio da mídia e da população anestesiada que dá apoio ao "herói" Sérgio Moro em nome do combate à corrupção e não faz ideia de que poderá ser a vítima mais adiante da supressão dos direitos individuais tão caros (referência à parcela da população que ainda não é vítima desse abusivo estado de coisas, como já mencionado anteriormente).

A essa altura, é possível arrematar: a escalada das medidas de exceção alcança, agora, uso político-partidário, dentro da Operação Lava-Jato, para servir de escada ao impeachment, pouco importando o devido processo legal e o correto enquadramento de condutas da Presidenta Dilma Roussef em crimes de responsabilidade previstos no Art. 85 da Constituição e definidos na Lei nº 1.079/1950.

Sendo assim, é possível concluir que, nesse contexto, as ilegalidades cometidas pela Operação Lava-Jato são deliberadamente projetadas para favorecer o ambiente político pró-impeachment, “legitimando” a deposição constitucional da Presidenta da República. Medidas de exceção cumulativas, para culminar com medida de exceção que rompe com o processo democrático-representativo, sob a aparência de legalidade institucional.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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