Lamennais, um revoltado V.

Repreendido em duas Encíclicas (“Mirari Vos” (1832) e “Singulari Nos” (1834)) pelo Papa Gregório XV, atacado pela Igreja Católica francesa que o via como um orgulhoso “padre apóstata”, perseguido pela monarquia do rei burguês, Luís Filipe, por sua pregação de sensibilidade com os humildes, e desprezado pelos agnósticos revolucionários, que o viam como um combatente exaltado do Evangelho, Félicité-Robert de Lamennais continuou a escrever fustigando intolerâncias e preconceitos de ordem política, social e religiosa.

Publica, em 1836, “Affaires de Rome”, um livro em que toma sua defesa de forma recalcitrante, agora combatendo a Igreja Romana.

Era a negação daquela tese amplamente consolidada que calava espíritos e determinava recursal definitivo: “Roma locuta est, causa finita est”, frase retirada dos contextos de um sermão de Santo Agostinho.

“Affaires de Rome” não concluía a causa nem encerrava o debate.

Pelo menos à luz a boa argumentação, amparando-se no fato que os tempos pós-revolucionários fragilizavam quaisquer afirmações que conflituassem com a racionalidade.

Após o advento das Luzes, nada tolheria a capacidade dos homens de pensar e agir conforme seu livre arbítrio.

Um debate que, surgido com os enciclopedistas, se prolongaria fertilmente em outras áreas, pela dialética Hegeliana e suas vertentes, as opiniões se equilibrando como simples teses e antíteses, esgrimindo argumentos numa luta interminável.

Aceitar um “catolicismo liberal”, todavia, estaria em conflito com a verdade absoluta que prega o catolicismo. Seria um “belo sonho e um triste equívoco”, como afirma Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999) em “O Fenômeno Totalitário”.

Para o pensador paulista, “Há uma radical incompatibilidade entre a afirmação plena da liberdade de pensamento, a decidida aceitação do pluralismo e da diversidade das crenças e das hierarquias de valores, no plano ontológico, epistemológico e no axiológico, com uma verdade absoluta e uma solução única como aquela que pressupõe o catolicismo”.
Se “Paroles d’un Croyant” (Palavras de um Crente), fora uma obra de enorme sucesso editorial, em reedições sucessivas, mas que depois restou condenada pela Encíclica “Singular Nos”, a nova publicação, “Affaires de Rome”, recebe uma acolhida fria, levando o seu Editor e o próprio Lamennais a um estado de falência.

Prestigiado, porém, como pensador, Lamennais assume a direção do jornal “Le Monde”.

Sua passagem naquele que seria o grande jornal parisiense foi fugaz; quatro meses apenas. O jornal, ao que parece, teve seus assinantes reduzidos.

Publica em 1837 o “Livre de Peuple” (Livro do Povo), obra que prega uma reforma social em proveito das massas populares e dos mais humildes.

Alguns pensarão agora num terceiro Lamennais, não mais o Católico Ultramontano inicial, nem aquele Liberal condenado pela Igreja.

Agora não mais deseja reinterpretar a fé Católica nem a ela se adaptar.

Chegara o momento de abandonar a Igreja, largar a batina, sair ao desabrigo do pálio que bem protege os ungidos do Senhor”.

Ousa virar cidadão comum, arrimo somente do próprio valor.

Queria ser livre, e para ser livre era preciso “antes de tudo amar a Deus: porque se amais Deus, fareis a sua vontade – e a vontade de Deus é a justiça e a caridade, sem as quais não há liberdade.

Firmar-se-á, daí para frente, como pensador “apóstata”, como o classifica Daniel-Rops, em sua monumental História da Igreja.

Sua pregação agora será confundida como socialista.

Uma confusão, porque Lamennais não combatia a propriedade privada: Todos, segundo ele, tinham o direito de desfrutar do seu patrimônio, e quem não o possuísse, tinha o direito de adquiri-lo como fruto do seu esforço.

Por outro lado, Karl Marx que virá décadas depois, talvez nunca o tivesse lido.

Em 1838, em meio a rebeliões de legitimistas (favoráveis à volta dos reis Bourbons), dos republicanos e socialistas de Louis Auguste Blanqui (1805-1881), conhecido como “o encarcerado”, porque viveu 36 anos trancafiado no cárcere, e dos bonapartistas, liderados por Luís Napoleão, o futuro imperador Napoleão III, a polícia do Rei Luís Filipe invade o escritório de Lamennais na Rua de Rivoli, em busca de textos subversivos.

Lamennais escreve em 1739 “De l’Esclavage moderne” (Da Escravidão moderna), uma violenta acusação contra a sociedade.

Bastante lido, com tiragem recorde de impressão Lamennais dissertava, para incômodo da sociedade empolgada com os avanços industriais, do lento caminhar dos pobres como escravos na antiguidade, cidadãos tornados servos na república, e agora constituindo o proletariado; uma servidão “mais covarde que a dos romanos pois aquela, pelo menos, tivera um líder como Spartacus”.

Fazia alusão ao gladiador Espártaaco, aquele que liderou uma revolta de escravos contra a República Romana, esmagada com imensa crucificação dos vencidos, promovida pelo Consul Marco Licínio Crasso em 71 a.C.

Em 1840, quando Adolphe Thiers torna-se Primeiro Ministro, a França vivia grande descontentamento popular, com o governo preocupando-se com a questão do Egito que se separara do Império Otomano.

Nesse tempo, enquanto a “Monarquia de Julho” via com indiferença a insatisfação popular, Thiers preocupava-se em apoiar o Paxá do Egito, contra a Inglaterra, junto com a Rússia, a Áustria e a Prússia que ladeavam o Paxá Otomano, quase iniciando uma guerra mundial.

É quando Lamennais publica “Le Pays et le Gouvernement” (O Pais e o Governo), violento ataque ao governo, às câmaras, à magistratura e à administração.

Quase igual ao nosso momento atual, o revoltado bretão denunciava que “as câmaras traficavam seus votos, a administração seus favores, a magistratura suas decisões, a polícia com a honra e a liberdade dos cidadãos; o povo sendo tratado com um soberbo desprezo, com uma dureza insensível a seus males, a quem parece querer lhes retirar toda esperança; o exército desorganizado pela espionagem e delação, o soldado submetido a uma disciplina escrava, forçado a combater não ao inimigo de além fronteira, mas o de dentro, contra os infelizes operários empurrados para a revolta pela miséria e opressão”.

Com tanto ataque variado, “Le Pays et le Gouvernement” terá sua edição proibida e confiscada, sendo o seu autor levado às barras do tribunal, sendo condenado a prisão e a 200 francos de multa.

Trancafiado na prisão parisiense de Sainte-Pélagie, durante o ano de 1841 escreve “Discussions critiques” (discussões críticas), em que ataca a Igreja de Roma. Logo depois publica “Une voix de Prison” (Uma voz da prisão), série de poemas em que evoca a juventude e a natureza, e “Du passé et de l’Avenir du Peuple” (Do passado e do futuro do povo), opondo-se à visão materialista do progresso. “Conclamando a uma ascensão do espírito para a verdade e a justiça, inspirada no grande amor de Deus pelos homens”. 

Saindo da prisão em 1842, ele completa “l’Esquisse d’une philosophie” (Esboço de uma filosofia), obra em três volumes, o último saindo em 1846. Tratando três temas: 1. Deus e o Universo; 2. O Homem e 3. A sociedade.

A ideia de Deus, o Ser necessário e absoluto: “Aquele que é, eis aí o seu nome, este nome incomunicável, repetido ao longo da existência do mundo, circulando como a vida no universo. Do seio da Criação, desde a manhã dos dias, se eleva uma voz que se repete sem fim, e os astros, dirigidos por uma força celeste, a escreve no espaço em letras de fogo”.

“Deus, que tem as propriedades essenciais: a força, a inteligência e o amor. Uma derivando da outra por uma ordem de princípio: a unidade na triplicidade, como dogma da Trindade”.

Um dogma tratado como mistério, e como resultado do trabalho humano, afinal “a força difere da inteligência e esta do amor, mas suas relações podem ser melhor representadas pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito”; a Trindade, segundo concebida ao modo Lamennais.

Sobre a Criação dirá o sábio Malouin: “Se a matéria é inerte, passiva, escura, ininteligível, a Criação é o ato pelo qual Deus a faz passar do universo do ser ideal à existência real”. As três pessoas participando do ato criador.

Para ele, o Universo desde a origem, vai evoluindo do menos perfeito para o mais perfeito.

Tema rejeitado pelo pensar agnóstico, por não ver o conhecimento de Deus como necessidade para a dedução da natureza, do homem e do universo.

Os agnósticos, no afã somente de sua observação indiferente, se não veem tudo como um jogo de dados cujo cansaço aborrece quem almeja desvendar, e entendendo ser inútil o perquirir para esclarecer, preferem acreditar no simples acaso a lhes ditar todas as regras.

Assim, muitos foram os críticos à filosofia lamennaiseana, como Jules Simon (1814-1896), que lhe dedicou um longo artigo na Revue Deux Mondes (revista Dois Mundos).

Em 1843 Lamennais publica “Amchaspands et Darvands”, nomes tomados da teologia persa, os filhos da luz e aqueles das trevas, descendência de Ormuzd, o príncipe do bem e de Ahriman, o príncipe do mal, na visão Zoroastrista do pensar maniqueu.

Entre os descendentes das trevas, Lamennais combate as instituições políticas e religiosas, a velha monarquia, a dissolução dos modos e costumes, os casamentos concebidos como simples meio para enriquecimento em sacrifício ao amor, a indústria e os negócios indiferentes “à miséria crescente sobre aparências enganosas em que se trabalha febrilmente,… o trabalho de todos servindo de proveito para poucos; de um lado todos os gozos e prazeres que se pode sonhar, todos os esplendores  de um luxo desenfreado, do outro o desnudamento absoluto e as supremas angústias da necessidade”.

Era o sintoma de um apodrecimento novo, potência que tudo cede e a quem todos se ajoelhavam e obedeciam; a potência financeira que começara a governar o mundo.

Era preciso criar um novo mundo, e Lamennais no seu sonho pensava que só as mulheres, pelo seu instinto materno, iriam “no meio da confusão das ideias e das revoluções dos sistemas seriam as guardiãs piedosas e incorruptíveis.

Se “L’Anchaspands” não foi um sucesso de vendas, talvez por seu título bizarro, a temática suscitará similar constatação.

Ali Lamennais se mostrava impiedoso com as tolices e hipocrisias de seu século, algo que lhe trazia mais inimigos que admiradores.

Todavia, “A Monarquia de Julho” começa a naufragar.

Não sendo possível a crítica ampla na imprensa e no parlamento, burlando a censura e os impedimentos, banquetes são programados quando a título de brindes, críticas e elogios então crescentes, a insatisfação reformista termina por inflamar as ruas, com o povo se rebelando.

Seguirão alguns erros e excessos: Uma manifestação pacífica, na tarde de 23 de fevereiro de 1948, pedindo a iluminação das ruas, acendendo os lampiões públicos, para um festejo popular.

Massacre do Boulevar dos Capoucines em 23 de fevereiro de 1848 – Gravura dda Internet

A manifestação conduz a uma fuzilada terrível, motivada por simples desencontro de excessos.

Alguém, do lado dos manifestantes, joga uma tocha de fogo sobre a guarda que ali se postara para contê-la. O resultado é uma fuzilada com dezenas de mortos.

Ali, no Boulevard dos Capucines, para quem o visita, bem próximo à Galeria Lafayette, há uma placa denunciando essa fuzilada atribuída a Guizot.

Seguir-se-á uma procissão com carroças cheias de cadáver percorrendo as ruas de Paris.

É o golpe final desferindo novos massacres finalizando por derrubar a “Monarquia de Julho”, que não resistiu, mesmo com o Rei Luís Filipe, abdicando para seu neto.

A República é proclamada em 25 de fevereiro de 1948. Será a II República francesa de vida efêmera.

Os feitos e as versões destes dias são narrados por Alexis de Toqueville, em seu memorável “Souvenirs” (Lembranças, de 1848), e por muitos, como Victor Hugo, em “Choses vue 1847-1848” (Coisas vistas), menos lido que o seu monumental romance “Les Miserables” (Os Miseráveis), em que paisagem e personagens interpretam os conflitos sangrentos acontecidos.

Na Segunda República, Félicité-Robert de Lamennais, junto com Lacordaire e Toqueville são eleitos Deputados.

Em “Souvenirs”, Alexis de Toqueville revela simpatia por Lamennais, enquanto “sonhador quimérico”.

Fará com ele parte de uma comissão de “Doações e Ofertas à Pátria”, encarregada de amparo às comunidades mais humildes. Também é eleito, enquanto “representante do povo”, encarregado de elaborar a “Lei fundamental de República”.

A Assembleia tem outro interesse, e logo Lamennais renunciará tal comissão para tristeza de Toqueville que insistiu em demover o colega.

Sobre a renúncia Toqueville assevera em suas lembranças de 1848: “Tratava-se de um acontecimento deplorável,… realizamos gestões muito prementes e humildes para que Lamennais renunciasse à decisão. Lamennais havia concluído que não podia ser o líder. Foi o suficiente para não querer mais ser coisa alguma.. Mostrou-se inflexível apesar de tudo o que lhe disse  no interesse das ideias que no eram comuns.

Deixará a Assembleia marcando em Toqueville a “ideia justa do poderio indestrutível e, por assim dizer, infinito que o espírito e os hábitos clericais exercem sobre os que uma vez o contraíram”.

Sairá da vida pública “com suas meias brancas, um colete amarelo, uma gravata berrante e uma sobrecasaca verde”, não deixando de “ser padre no caráter e mesmo no aspecto”.

Caminharia, enquanto a saúde o permitisse em “passos miúdos e apressados, discretos, sem virar a cabeça ou olhar qualquer pessoa, e assim deslizava entre os outros com um ar desajeitado e modesto, como se tivesse saído de uma sacristia, e com um orgulho capaz de passar por cima da cabeça dos reis e de enfrentar Deus”.

Quanto à Assembleia, os feitos revelarão depois a sua curtíssima vida.

Luís Napoleão Bonaparte será eleito Presidente da República por esmagadora maioria dos franceses. Derrota Alphonse de Lamartine, o mais destacado Deputado e ao General Cavaignac.

Logo desferirá o Segundo Golpe de Dezoito de Brumário, tornando-se imperador com o Título de Napoleão III, ou “Napoleon, Le Petit” (Napoleão, o Pequeno), segundo verve de Victor Hugo.

Envelhecido e decepcionado, Lamennais empreende ainda a tradução da Divina Comédia de Dante.

Em dezembro de 1853 contrai uma pneumonia e seu estado de saúde se agrava definitivamente, passando privações entre má nutrição e excesso de frio.

Falecerá em 27 de fevereiro de 1854.

Enquanto moribundo estava os seus inimigos aguardaram que no último suspiro Lamennais se reconciliasse com a Igreja, que pedisse perdão de seus erros, e que reivindicasse o perdão de seus pecados.

Conta-se inclusive que sua sobrinha, entre pranto e prece, perguntara ao rebelde Malouin: – “Meu tio, meu tio Féli, tu queres um Padre, não é?”. Lamennais respondeu – “Não”. 

Incrédula ela replicou: – “Meu tio, eu te suplico!”.

Lamennais respondeu com uma voz mais forte; – Não, não, não, que me deixem em paz!” E deu o último suspiro às nove horas e trinte e três minutos, sem querer se reaproximar da Igreja que o rejeitara.

A morte de Lamennais se espalhou ensejando preocupações no governo de Napoleão III. Temia-se uma manifestação popular, no seu enterro previsto para 1o de Março.

O povo, porém, e como sempre, está preocupado com a sobrevivência apenas.

As autoridades apressaram o horário do sepultamento temendo manifestações e assim o enterro de Lamennais aconteceu como ele queria; despercebido e com a presença de poucos e raros amigos, num caixão comum, no local destinado aos anônimos e desconhecidos, os indigentes e esquecidos do Cemitério Père-Lachaise.

Eu visitei o Cemitério de Père-Lachese num dia de finados em anos passados.

A visita vale a pena. Conhece-se a História Francesa pelos túmulos.

Ali estão os restos mortais de Abelardo e Heloísa, os eternos amantes, François Chopin, o compositor das Polonaises, o fabulista La Fontaine, o escritor Oscar Wilde, Eugene Delacrix, o pintor revolucionário, a cantora Edith Piaf, Yves Montand e Simone Signoret, entre muitos, e o mais visitado do cemitério: o do espiritualista Allan Kardec.

Um dia, quem o sabe, irei voltar ao Père-Lachaise, saber onde estão enterrados os milhares ou milhões de desvalidos e anônimos, onde se encontra também o Padre Félicité-Robert de Lamennais, cujo DNA tão perdido está entre aqueles que mais amou, mas que vivo permanece com suas ideias a agitar o pensamento dos homens de boa vontade.

Muitos erros foram cometidos pelo rebelde Malouin e pela Igreja de seu tempo. Erros que não vale invocar desculpas nem condenações.

A Igreja é Divina e Humana. Ela prossegue e permanece com seus santos, heróis e hereges. Todos homens somente (e mulheres para atender os que exigem tal explicitação), todos e todas em limitações, sonhos e enganos à espera do amparo do Pai que a todos bem acolhe.

Encerro, desculpando-me pelo excesso com que refleti o notável texto “Lamennais – Le revolte 1782-1854” (Lamennais – o revoltado), a quem recomendo, por melhor deleite.
  

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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