O negacionismo como política de ataque à democracia

Hamilcar Silveira Dantas Junior

Professor do Depto. Educação Física e do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE/UFS).

hamilcarjr@hotmail.com

Fonte: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ditadura-nunca-mais-e-tema-de-protesto-contra-falas-de-bolsonaro/

 

A Terra não é esférica! Não existe aquecimento global! Não há comprovação de eficácia das vacinas contra a covid-19! Não houve ditadura militar no Brasil! A negação se tornou uma prática comum nos dias de hoje, principalmente nas redes sociais, espaço em que todos são “autoridades” na emissão de opiniões sem embasamentos lógicos ou científicos. Como compreender que a democracia, um esforço positivo e afirmativo de uma convivência política, possa ser atacada permanentemente sob o aspecto de negação de dados históricos concretos que a ameaçam constantemente?

O ato de negação possui diversas dimensões. No campo da linguística, em seus aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos, constitui o ato de refutar uma afirmação ou indicar que não se quer fazer algo, mesmo aceitar uma afirmação. No campo da matemática, é uma operação lógica de produção de um valor falso em oposição a um verdadeiro. Na psicologia, é o ato de uma pessoa que, consciente ou inconscientemente, se recusa a tomar conhecimento de um desejo, fantasia, sentimento ou pensamento. No cotidiano, o ato de negar está presente, por exemplo, nos discursos de nossas mães que insistem em refutar as evidências cientificas que sorvete não produz resfriados ou faringites!

O simples ato de negar evidências envolve um sistema de crenças que repercutem em dimensões individuais. São pessoais e, geralmente, inofensivas! Por outro lado, quero problematizar o negacionismo enquanto uma ação articulada, uma política de governo que tem sistematicamente, no Brasil, atuado com a intenção de negar evidências do passado para impor uma agenda política do presente e implementar políticas de supressão da democracia para o futuro. Nesse movimento, se encontram os atos oficiais de negação da ditadura militar, iniciada em 1964.

Desde sua posse, em 2019, o Presidente Bolsonaro já manifestara suas intenções de rememorar a data de 31 de março como uma data alusiva à “revolução” de 1964. Sob responsabilidade das Forças Armadas e com a chancela do Ministério da Defesa, as Ordens do Dia, lidas nessa data nos últimos 4 anos, constituem-se em práticas negacionistas da história e ataques veementes à ordem democrática.

Ao afirmar que as Forças Armadas agiram conforme os anseios da população brasileira para garantir a paz e a estabilidade, contra a ameaça do comunismo e para garantir a liberdade e a democracia, o Ministério da Defesa, um órgão de Estado, não de Governo, que deve zelar pelos pressupostos constitucionais republicanos, age acintosamente contra a memória das vítimas da ditadura, contra os estudos historiográficos e as bases democráticas, arduamente construídas desde 1985.

Na Ordem do dia de 31 de março de 2020, já sob os efeitos da pandemia, as Forças armadas afirmaram que o “Movimento de 1964” foi um marco de nossa democracia, balizado que estava pela sociedade, empresários e imprensa nacionais. Em meio ao luto de 300 mil mortos, no 31 de março de 2021, tendo o General Walter Braga Netto como mentor intelectual do texto, se afirmou que as Forças Armadas pacificaram o país, como um pedido da população, e garantiram as liberdades democráticas que vivemos hoje.

No último dia 31 de março, concluiu-se quatro anos de ação negacionista articulada da ditadura militar brasileira. Novamente assinada pelo General Braga Nettto, a Ordem do Dia alegou que “as famílias, as igrejas, os empresários, os políticos, a imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as Forças Armadas e a sociedade em geral aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para restabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implantado no Brasil”. Essas ações institucionais do Ministério da Defesa, em um Estado democrático que rememora e celebra um golpe militar que recrudesceu em uma ditadura de 21 anos, fazem parte de uma tentativa articulada e oficial de negacionismo histórico. Tal negacionismo vem sendo legitimado por documentos oficiais, sustentados por narrativas travestidas de cientificismo que minam as bases republicanas e a ordem democrática.

Entendo que vivemos uma orquestração institucional, amparada em discursos organizados pseudocientíficos, de falseamento da história com fins político-ideológicos que, por seu turno, minam as bases democráticas na solidez de seus princípios constitucionais. Se banalizamos uma ditadura, se justificamos as benesses de um golpe de Estado para garantir a “ordem democrática”, não estamos falando de teoria política, mas de ações oficiais de quebra do Estado de direito.

Os estudos historiográficos sérios demonstram que houve golpe civil-militar, que depôs um presidente democraticamente eleito, fechou o Congresso Nacional e elegeu generais para governar o país. Demonstram que houve tortura, morte e desaparecimentos de presos políticos. Refutam as teses de prosperidade e honestidade dos governantes e agentes públicos da época. Além de demonstrar as teses autoritárias, elitistas e moralistas que grassaram à época.

As quatro Ordens do Dia 31 de março, entre 2019 e 2022, são claramente falseadoras da história e uma arma retórica potencializadora da horda de protofascistas que periodicamente vai às ruas pedir “intervenção militar constitucional”. A sanha autoritária que transparece nesses documentos confunde democracia e ditadura, minando as bases da República e alimentam projetos de poder fora do espectro democrático.

Tais discursos destroem, falseiam, adulteram fatos, processos e o conhecimento histórico consolidado. Distorcem teses históricas consagradas. Moralizam a análise de um passado idealizado. Por fim, diminuem os impactos de um acontecimento traumático da história, na qual muitos familiares sequer puderam enterrar seus entes queridos. As Forças Armadas e a Presidência, por meio desses discursos oficiais, se aproximam do que o historiador Pierre Vidal-Naquet chamou de “assassinos da memória”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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