O pai indígena

Luís Guilherme Assis Kalil

Professor de História da América da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM)

 

A antropóloga Aparecida Vilaça e Paleto. Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/antropologa-relata-em-livro-relacao-com-lider-indigena-que-adotou-23079429

Ao morrer, no interior de Rondônia em 2017, Paletó foi enterrado em um caixão coberto com a bandeira do Palmeiras, ainda que não demonstrasse interesse por futebol. O indígena não teve seu corpo comido pelos parentes e amigos, uma vez que os rituais antropofágicos dos Wari’ haviam sido abandonados há décadas, após o contato com seringueiros, funcionários do governo e, principalmente, missionários cristãos.

O fim desse rito funerário é apenas um exemplo das profundas mudanças enfrentadas por esse grupo indígena amazônico nas mais de oito décadas de vida de Paletó. Seu próprio nome é um indicativo dessas transformações. Como era comum em sua cultura, ele mudou de nome diversas vezes até passar a ser conhecido como “paletó”, a primeira roupa que aceitou vestir após longa resistência para permanecer nu mesmo após o contato com os brancos.

No dia seguinte à morte de Paletó, a milhares de quilômetros de distância, a pesquisadora Aparecida Vilaça começou a escrever suas memórias sobre ele. O contato de Vilaça com os Wari’ começou em 1986, em uma viagem a Rondônia realizada pela pesquisadora como parte de seu doutorado. As longas estadas na região estreitaram o relacionamento entre a antropóloga do Museu Nacional e um dos principais líderes locais, que acabou se tornando seu pai indígena.

O resultado foi publicado no final de 2018 pela editora Todavia. Em Paletó e eu: memórias de meu pai indígena, Vilaça parte de um ponto de vista profundamente pessoal não apenas para refletir sobre a atribulada vida de Paletó, que teve grande parte de sua família assassinada por seringueiros na década de 1960, mas também para tocar em questões muito mais amplas acerca dos contatos entre brancos e indígenas.

Ao longo da obra, a autora apresenta vários exemplos que destacam a complexidade dessas relações. Em sua primeira experiência entre os Wari’, muitos indígenas mais velhos não se deixaram fotografar alegando que, quando morressem, a visão dessas fotos entristeceria seus filhos. Atualmente, entretanto, é comum nas casas da região a presença de quadros com fotomontagens nos quais os indígenas são retratados vestindo roupas ocidentais de gala. Isso leva a autora a concluir que a fotografia “foi apropriada pelos Wari’ não em seu aspecto de fixidez, de espelho do mundo, mas de transformação, de projeção dos corpos em outro mundo, o que não deixa de nos remeter aos xamãs e seus corpos alternativos” (p. 58).

O mesmo ocorre em relação aos nomes. Como visto no caso de Paletó, era costume entre os Wari’ adotar vários nomes diferentes ao longo da vida. O contato com os brancos fez surgir a exigência da adoção de nomes “brasileiros”. No entanto, essa imposição foi ressignificada pelos indígenas que conseguiam com isso ampliar seu estoque de nomes, aumentando sua proteção aos ataques de feiticeiros, que costumam atrair suas vítimas chamando-as pelo nome.

O aspecto que mais desperta a atenção da autora, e que serve de eixo para várias reflexões sobre os contatos entre brancos e indígenas, é a presença de missionários na região amazônica. Vilaça ressalta que o próprio Paletó atribuía sua conversão ao medo de ser abandonado por seus parentes, que iriam para o céu, enquanto ele, de acordo com as antigas tradições locais, iria para o mundo dos mortos no fundo dos rios. Entretanto, anos após ter se tornado evangélico, Paletó e vários outros Wari’ “largaram Deus”. A reconciliação com a fé cristã só ocorreu nos anos 2000: “de acordo com algumas pessoas que também voltaram a ser crentes em 2001, isso aconteceu quando assistiram, na televisão comunitária, ao ataque dos aviões ao World Trade Center, e entenderam, por meio das exegeses dos pastores, que uma guerra mundial iria acontecer, sinal da proximidade do fim do mundo” (pp. 153-154).

Essas questões, porém, não são abordadas a partir de um viés estritamente acadêmico. Passagens da vida pessoal da autora são uma constante em toda a obra. Durante uma de suas longas estadas entre os Wari’, Vilaça afirma que seu filho mais velho, então com forte infecção urinária, foi auxiliado por missionários cristãos. A descrição, contudo, não se encerra com a cura de Francisco, servindo como base para reflexões mais amplas – e extremamente relevantes e atuais – sobre os contatos entre diferentes culturas e religiões: “Embora não possa aceitar o trabalho de catequese que realizam, que a meu ver acaba por minar o que há de mais vital na cultura Wari’, serei eternamente grata a eles pela ajuda que me deram naquele momento. Com eles, e com outros amigos que fiz em Guajará, aprendi que a solidariedade nessas regiões afastadas pode superar divergências ideológicas” (p. 144).

 

Para saber mais:

Trechos das memórias da autora foram publicados anteriormente na Revista Piauí, em 2017. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/paleto-e-eu/ (Acesso em: 29/02/2020).

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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