Quaresma em tempos ásperos.

Ouso utilizar o título de um livro de Vagas Llosa, “Tiempos recios”, ou tempos ásperos, como assim está na edição da Alfaguara, para me desviar de muitas histórias de conspirações internacionais e outros interesses escondidos, nos anos presentes de Guerra Fria, agora renovados, com Kiev sendo bombardeada pelo russos de Putin, justo em meio a uma Quaresma, iniciada hoje, 02 de Março, Quarta-Feira de Cinzas.

Tempos Recios de Vargas Llosa.

 

Não irei adentrar no livro de Llosa, já que me interessa sobremodo as asperezas dos “recios” tempos em que vivemos.

 

Uso apenas a capa do livro de Llosa adquirido por mim, em lançamento, em Buenos Aires, na Argentina.

 

O tempo é de Quaresma , o que me faz lembrar de um artigo de Dom Mattheu Rougé, Bispo de Nanterre, França, publicado em 6 de março de 2019, data distante, mas eminentemente atual.

Mgr. Matthieu Rougé, Bispo de Nanterre, França, como exibido na edição de 6 de março de 2019 no Le Figaro

Vamos ao texto de Dom Rougé: Nestes dias de crise, no nosso país e na Igreja, o tempo da Quaresma chega no momento certo. A Quaresma são quarenta dias no deserto, decisivos para os cristãos, mas significativos para todos: quarenta, em memória dos quarenta anos do povo hebreu no deserto, entre a saída do Egito e a entrada na Terra Prometida (é importante os tempos atuais recordar este parentesco espiritual inalterável); quarenta, em memória dos quarenta dias do próprio Jesus no deserto da Judéia, depois de seu batismo no Jordão e antes do início de seu ministério público.

 

O que essa peregrinação interior ao deserto pode significar para nós hoje?

O deserto é antes de tudo um lugar de silêncio.

Quão necessário, quão salutar, quando estamos sobrecarregados de barulho e declarações ultrajantes, notícias verdadeiras e falsas, frases de efeito assassinas e condenações arrebatadoras, reservar um tempo para calar a boca e se retirar desse coro de buzinas para o qual a mídia debate e as mídias sociais fluem. Todos somos chamados a jejuar das palavras nocivas e da submersão consensual no burburinho e efervescência superficiais.

O deserto é, portanto, um lugar verdadeiro de silêncio.

A partir do silêncio interior e da escuta purificada, todos podemos dizer a verdade sobre si mesmos e ajudar a dizer a verdade sobre as realidades ao seu redor.

Dizer a verdade não consiste primeiro ou apenas em deixar-se prender no mal do qual se pode testemunhar ou infelizmente ser ator.

Porque é a luz que pode desmascarar a escuridão (friso meu).

A violência, a disfunção e o desarranjo que permeiam a nossa sociedade são tantos e inaceitáveis ​​quanto a riqueza e os bens do nosso país o são gigantescos.

Os abusos, os contra testemunhos e os crimes cometidos por homens da Igreja são tão mais escandalosos porque o Evangelho é um tesouro de vida e de alegria, e porque, apesar das torpezas de alguns que envergonham sobretudo, há uma imensa maioria de sacerdotes, religiosos e fiéis que perseveram em um testemunhal labor, por corajoso e luminoso.

(Valendo à pena; transcrever literalmente: “Malgré les turpitudes de quelques-uns qui jettent l’opprobre sur tous, l’immense majorité des prêtres, des religieux et des fidèles persévere dans un temoinages courageux et lumineux”)

Dizer isso não é, em virtude de um ilusório “método Coué”, preferir o copo meio cheio ao copo meio vazio. (O método Coué, do psicólogo Émile Coué (1857-1926) trata da autossugestão enquanto técnica psicológica que se fundamenta na crença de que cada pessoa seja capaz de influenciar a si própria por meio das palavras. Quando alguém, por exemplo, está em sintonia com o ódio, o medo, a agressividade ou a raiva, sua mente tende a fazer com que a próprias pessoa entre em ressonância com essas mesmas energias negativas)

A autêntica lucidez humana e espiritual, a que nos convida à Quaresma, passa pela consideração conjunta do copo meio vazio e do copo meio cheio, desta mistura de trevas e luz, cinza e fogo, que caracteriza toda a vida humana, afinal a salvação tem esse preço: nada tendo com fugas para sonhos ou otimismo barato demais, nem confinamento no desespero, o que seria uma outra forma de cumplicidade com o mal.

Quando dramas ou crimes que ficaram ocultos vêm à tona, por mais dolorosos ou mesmo traumáticos que sejam, não devemos nos desesperar. Porque a dignidade humana e cristã passa pelo fato de preferir a luz às trevas. “A verdade vos libertará”, disse Jesus de uma maneira que é para sempre saudável.

Enquanto local de silêncio e verdade, o deserto é também um lugar de conversão, de transformação do coração e da mente.

O que está fundamentalmente errado com a nossa sociedade e a Igreja?

O que deve e pode mudar sem demora?

Nosso tempo não ama suficientemente a verdade, muitas vezes desconfia da própria verdade, às vezes chegando ao ponto de desqualificar qualquer possibilidade de verdade.

A recusa determinada da mentira, o gosto por buscar e dizer a verdade, com moderação e precisão, torna-se uma questão de vida ou morte para todos.

A mentira antropológica constitui um veneno ou mesmo um suicídio político.

O mesmo vale para a mentira espiritual.

O desinteresse pela verdade e a rejeição do diálogo muitas vezes andam de mãos dadas.

Todos podem fazer seu mel – um dos alimentos da Terra Prometida – com os acentos do Papa Francisco pela sinodalidade e contra o clericalismo.

Todos os tipos de clericalismos (profissionais, institucionais etc.) estão de fato paralisando nossa sociedade.

A busca constante da verdade e a escolha resoluta do diálogo exigem uma terceira atitude, coragem, virtusno sentido mais forte do termo.

Cem anos após o nascimento de Solzhenitsyn, seu Discurso sobre o declínio da coragem poderia bem ser uma excelente leitura quaresmal.

A Quaresma leva à Cruz.

Jesus desmascara a mentira e assume o desespero que atormenta a humanidade.

Provavelmente, não houve grito mais retumbante na história humana do que o grito de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

Mas esse uivo não é a última palavra na história.

Paradoxalmente ele anuncia a aurora pacífica e alegre da Ressurreição.

É este caminho de esperança que o deserto quaresmal nos abre ainda hoje. O ensaísta Jacques Julliard citou aqui há poucos dias este ditado de Bernanos: “O otimismo é uma falsa esperança para o uso de covardes e imbecis. A esperança é uma virtude, virtus, uma determinação heróica da alma. A forma mais elevada de esperança é o desespero vencido, superado. “Desespero superado”, eis um outro nome para a Ressurreição.

Usando agora palavras minhas, relembro a célebre frase de São Paulo, para quem “se Cristo não ressuscitou vã é nossa fé”, e daí o grito maior de Esperança: “Morte, ó morte, onde está tua vitória, onde está teu aguilhão!?”.

Em tempos de guerra, é preciso lembrar que os conflitos humanos existem, E eles matam, eles destroem! Trazem dor e sofrimento. Não adianta saber onde está a razão, se está na boca do fuzil ou no além dele enquanto alvo.

O homem é o mesmo. Não muda!

Para tempos ásperos é que existe a Quaresma: uma quadra de reflexão; sobremodo, com as cinzas firmando a lembrança da nossa fugacidade, enquanto fim de todos nós, e de cada um, sem exceção, não se extinguindo no destino final, onde nem Deus seria ali louvado, segundo o repente do salmista: “No sepulcro haverá quem vos cante o amor e proclame entre os mortos a vossa verdade? Vossas obras serão conhecidas nas trevas, vossa graça, no reino onde tudo se esquece?”

Uma boa quaresma para todos!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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