Quem trabalha é que tem razão?

Andreza Maynard

Doutoranda em História pela Unesp
Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente(GET/CNPq/UFS)

Imagem: Trabalhadores homenageiam Vargas no Rio de Janeiro, em 1940.

Fonte: CPDOC.

No dia 10 de novembro de 1937 o presidente Getúlio Vargas, apoiado pelo Exército e por outras forças antidemocráticas, institui o Estado Novo no Brasil. O povo brasileiro foi comunicado do golpe político através do rádio, um dos principais meios de comunicação de massa à época. Até 1945 o país viveu sob um regime autoritário, inspirado em modelos europeus.

Uma das principais pesquisadoras sobre o Estado Novo, Maria Helena Capelato, destaca que nesse período o tema da modernização foi um dos principais motivadores da política varguista. Para atingir a meta de equiparar o Brasil às nações mais prósperas do mundo era preciso não apenas incentivar a industrialização do país, mas também racionalizar o mundo do trabalho e manter a ordem social.

Assim, a legislação trabalhista elaborada com inspiração na “Carta del Lavoro” (implementada na Itália de Mussolini), tinha o objetivo de regulamentar os conflitos entre patrões e empregados, ao mesmo tempo em que pretendia controlar os sindicatos. Para tanto foi criado o regime de sindicato único, que estava sob o controle do Ministério do Trabalho. A imagem de “pai dos pobres” caiu bem a Vargas, que ainda hoje é lembrado como um benfeitor dos mais humildes.

No entanto a concessão dos direitos ao salário mínimo, férias, limitação de horas de trabalho e justiça do trabalho estavam destinados apenas aos trabalhadores que tivessem carteira assinada e estivessem sindicalizados. Nesse sentido, muitos cidadãos brasileiros não foram agraciados pelos benefícios sociais concedidos pela política estado-novista. Esse detalhe ficava de fora da propaganda do governo.

O anúncio das benfeitorias do Estado Novo e do seu líder era incumbência do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), uma criação inspirada no “Ministério da Propaganda” alemão. O DIP realizava a propaganda política e a censura em todo o território brasileiro. Um dos alvos dos censores do órgão era o samba. As letras compostas pelos artistas precisavam da aprovação estatal para serem veiculadas publicamente.

Como o regime exaltava o trabalho e a nacionalidade, alguns sambistas precisaram tomar cuidado com suas composições para continuarem podendo gravar discos e terem suas canções tocadas no rádio. O pesquisador Adalberto Paranhos afirma que o Estado Novo estabeleceu uma “cruzada antimalandragem” com o intuito de interromper a ligação entre samba e malandragem. Além disso, um ou outro samba mencionava as dificuldades da vida do trabalhador, algo que também não era tolerado pelo DIP.

Um dos casos mais conhecidos da interferência do DIP se refere à música de Wilson Batista e Ataulfo Alves Bonde de São Januário. Composta em 1941, a letra dizia: “quem trabalha é que tem razão/eu digo e não tenho medo de errar/o bonde de São Januário/leva mais um operário/sou eu que vou trabalhar/antigamente eu não tinha juízo, mas resolvi garantir o meu futuro/sou feliz, vivo muito bem/a boemia não dá camisa a ninguém/e digo bem”. Originalmente a letra fazia referência a um “sócio otário”, que na versão final da música foi transformado em “operário”.

Muitas canções se tornaram muros de lamentações das mulheres que reclamavam de companheiros sanguessugas. Com certa dubiedade, esses sambas deixavam escapar que o sofrimento feminino se dava também pela exploração do trabalho diário nas fábricas. Sete e meia da manhã (1945) composta por Pedro Caetano e Claudionor Cruz, era cantada por Dircinha Batista. A letra contava a história de uma operária que passava por uma verdadeira via-crúcis para conseguir sobreviver: “Estou atrasada/E se não for para o batente/Ele vai me dar pancada/Estou tão cansada/De ouvir todo dia/A mesma toada/O apito da fábrica a me chamar/Levanta da cama e vem trabalhar/Mas que viver desesperado”. Músicas como essa driblavam a imposição do discurso governamental, pois o trabalho aparece aí como um martírio.

A canção Amélia (1941), de Mário Lago, foi citada como um exemplo de “samba negativo”, por se tratar de mau exemplo para o trabalhador bem comportado que se queria para o Brasil. Sua letra dizia: “Às vezes passava fome ao meu lado/E achava bonito não ter o que comer/E quando me via contrariado dizia/Meu filho o que se há de fazer/Amélia não tinha a menor vaidade/Amélia que era a mulher de verdade”.

Os ideólogos do regime criticavam as preocupações com o amor, a vida fácil e o conformismo das mulheres em sustentarem malandros. Os sambas deveriam deixar o elogio à vadiagem de lado, dedicando-se tão somente a destacar as vantagens do trabalho. Exercendo controle sobre a produção cultural do período, o DIP procurava interferir até mesmo nas letras dos sambas. No entanto alguns tentavam driblar as imposições da censura. Coisa que só um malandro dos bons conseguia.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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