Dois Temas

1º Tema

O crime de Silvestre.

Na segunda-feira passada, 12 de outubro, a edição do Le Figaro continha entre suas efemérides destacadas, a lembrança da morte, em 12 de outubro de 1924, de Anatole France, escritor francês de notável valor, considerado um dos maiores do seu tempo.

Anatole France foi o pseudônimo adotado por François Anatole Thibault (nascido em Paris, a 16 de abril de 1844 e falecido em Saint-Cyr-sur-Loire, a 12 de outubro de 1924), um dos mais importantes críticos literários da Terceira República Francesa (1970-1940).

Anatole France o autor genial de Sylvestre Bonnard – LeFigaro 12/10/2020

A chamada do Le Figaro destacava uma frase do seu romance, “O Crime de Sylvestre Bonnard”, no qual o personagem título confessava: “Eu sempre preferi a loucura das paixões à sabedoria da indiferença”.

“Le Crime de Sylvestre Bonnard” foi um dos últimos livros que traduzi com a minha saudosa Professora Maria da Glória Portugal, edição que adquiri, baratinho, a R$1,00, creio eu, pescado num cesto de refugo desprezado da Livraria Francesa, situada na Rua Barão de Itapetininga, 275 fundos, em São Paulo, livro que, é bom repeti-lo, já estava sem capa e amarelado, largado num monte de publicações inservíveis para muitos, mas que nos foi, para mim e para a Professora Glorita; uma joia sem preço.

Uma preciosidade tamanha que jaz escondida na minha biblioteca entre poeiras, tendo eu vivido esta semana, quase o mesmo drama de Bonnard, ele imerso entre seus alfarrábios, deles esquecido de viver, assaltado por uma ânsia terrível de folhear, uma obra raríssima, quão pouco disputada, desconhecida mesmo, e talvez única!, que lhe foi descoberta num catálogo de um vendedor ambulante, M. Coccoz, que o importunara e a seu gato Hamilcar, sonolento e fastidioso, obra que fascinaria o ser, e o existir, daquele quase-ancião, morno e celibatário acomodado, por algumas décadas, que se viu desperto, súbita e arrebatadamente, por uma inusitada razão de viver, movida qual desejo juvenil, irrefreável, de possuir e manusear este raríssimo exemplar de La légende dorée de Jacques de Gênes (Jacques de Voragine) (A lenda dourada), que lhe era desconhecida, enquanto filólogo especialista.

Sem lhe ser igual, fiquei igual a Bonnard durante a semana que passou, sem gatos, nem latidos acompanhados, querendo não possuir “A lenda dourada” de Voragine, mas farejando por onde se perdera o meu Anatole France, para redescobrir  “O Crime de Sylvestre Bonnard”, voltar a relê-lo, só para  relembrar o que teria acontecido àquele membro das mais notáveis academias gaulesas e internacionais do século XIX, relato que sumira nas minhas estantes, e definitivamente restava esquecido, na minha mente, enquanto enredo.

Como o livrinho não foi encontrado, salvou-me a internet e o Google  conseguindo resgatar via pdf (gratuito, que maravilha!) uma cópia que logo impressa saciou-me toda a ânsia de reler, isso depois de me esfalfar em debalde procura, inclusive com pedidos inúteis a São Longuinho!

Dito isso, por preambulo, ouso pedir escusas aos que me seguem por querer afastar-me das discussões políticas, da COVID-19, e dos relatos fúnebres diários do noticiário.

Prefiro ousar o aporrinho de meus leitores com outras ideias, como as de Bonnard, por exemplo, mestre que em doutas aulas, quiçá preleções, doutrinava: “Saber não é nada, imaginar é tudo”.

Qual teria sido então o crime de Sylvestre Bonnard, homem amadurecido nas boas leituras, e parecido, mas não igual, a Alonso Quijano, o famoso fidalgo asturiano, que por excessivas leituras de aventuras cavaleiras, perdera a razão, e se transformara por Miguel de Cervantes Saavedra em “El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha”, saindo ao combate de moinhos de vento, enquanto encarnação ciclópica de Briareus, e cortejando meretrizes, a “buen permiso” e de farto gozo, concedentes, transmutando-as em “dulces y amables”, consequentes, quão veneráveis donzelas?

Não!  A loucura de Bonnard perseguiria o desvario simples dos pesquisadores, dos estudiosos, dos que se orgasmam desfibrando uma perna de um mosquito, uma asinha frágil de uma mosca, uma filigrana a desenhar para procurar melhor entender, perquirir o canto do maruim, o sonido da muriçoca, por bem melhor alucinar que a melodia das sereias, que ensurdecera Ulisses de Ítaca, e até o comichão do micuim, que coça como pé-de-atleta, mas não cheira quanto; tudo assunto vero e importante, para a indagação minuciosa de uma vida.

Porque a vida de Sylvester fora dedicada ao estudo, à leitura dos clássicos, a decifrar tumbas e epitáfios, percorrer o mundo dos cemitérios, futucar os seus sarcófagos, esgaravatá-los, desvendar-lhes as escritas perdidas no tempo, desde os tempos primevos, áureos idos e havidos, por heroicos e sublimes, onde viveram santos e restaram lendas, verdadeiras legendas de perdidas oferendas, antífonas que ficaram ressonadas ao léu, para serem descobertas no porvir, e a vir, quem o sabe, vir a luz, desvendar e acontecer.

De modo que a visita inoportuna de M. Coccoz, um homenzinho medíocre e inexpressivo que lhe batera a porta, tirara-o do seu torpor e labor, oferecendo-lhe a venda um pequeno monte de publicações de seu desinteresse, como esporte, culinária, cutelaria, alguma puia, fofocas da corte, chistes, trocadilhos e facécias, jogos de toda natureza, nada que o agradasse, mesmo que o vendedor destacasse como notáveis, “A história da Torre de Nesle”, contendo o amor adulterino de Margarida de Bourgogne com o capitão Buridan, os “Amores de Abelardo e Heloisa”, e “Regras de jogos sociais”, contendo todo tipo de jogos comuns naquela época, 1849, como Jogos de tabuleiro: dado, damas, xadrez, etc.

Dos amores em geral, M. Bonnard , gentilmente recusara dizendo que sua idade não lhe permitia mais nada erigir em termos dessa temática.

Quanto aos jogos de pio e dados, lembrara-se de seu velho amigo Bignam,  confrade de Academia, contumaz malabarista de copos de gamão, que fora recentemente conduzido ao cemitério, solenemente, por cinco dos seus contumazes companheiros de tablado, algo que não pensaria Bonnard, por ter apenas o gato Hamilcar, como seu único e fiel companheiro, e sua governanta Hélène, que lhe organizava a casa e a mesa, mas não lhe preenchia a vida.

Mas, incansável e persistente, o homúnculo M. Coccoz oferecia de tudo do seu acervo; de “A chave dos Sonhos”, contendo todos os mistérios de Morfeu desvendados, até os segredos da “Cozinha Burguesa”, sugerido como presente para o enriquecimento da culinária de Hélène.

Não houvera nenhum agrado, nem mesmo a promessa de lhe trazer num outro dia “Os Crimes dos Papas”, com figuras coloridas.

Quando o homem foi embora, Bonnard lamentou de sua cara infeliz ao sair sem conseguir vender nada, deixando-lhe apenas um tosco catálogo de algumas ofertas.

Aquilo lhe martelaria a lembrança por algum tempo.

De maneira que, só a título de comiseração, resolvera adquirir “A História de Estelle e Nemorin”, que M. Coccoz dissera possuir uma cópia, alegando que gostava muito de historietas de  pastores e pastoras, e que teria o prazer de comprar, por um preço razoável, a narrativa desses dois amantes perfeitos.

O que Bonnard não sabia é que o homenzinho era seu vizinho, residindo com a esposa grávida no sótão de seu prédio, em um local miserável, ao desconforto e mal abrigo, o que lhe ensejou vontade maior de ajudar o casal Coccoz.

Como acontece às filhas de Eva, a governanta Hélène não nutrira simpatias, à primeira vista do casal, ele minúsculo e inexpressivo, e ela sobretudo, por ser jovem e bonita, estes comuns defeitos, a despertar cobiça e despeitos, parecendo-lhe por isso, desocupada e vadia, sobretudo porque a gestante curtia sua gravidez, cantando o dia todo.

A ajuda, porém, demorou demais, de modo que M. Coccoz falecera, sua esposa parira, e Bonnard conheceu o rebento algumas vezes, um garoto bonito e sorridente, ao doce cantar da mãe, a quem ajudou muitas vezes, economicamente, família que depois sumira sem lhe chamar atenção, o tempo passando.

Um dia, anos depois, Bonnard resolveu folhear o catálogo que M. Coccoz lhe deixara e que permanecera esquecido.

E estava ali o tesouro longamente procurado: “A Lenda dourada de Jacques de Gênes (Jacques de Voragine), tradução francesa”. Manuscrito do século XIV, contendo a tradução completa da célebre obra de Jacques de Voragine : 1° as legendas dos Santos Ferréol, Ferrution, Germain, Vincent e Droctovée ; 2° un poema sobre a Sepultura milagrosa do Monsenhor e Santo  Germano de Auxerre. Tradução das legendas et do poema da autoria do Clérigo Alexandre.

A alegria o arrebatara, afinal dias antes tinha visitado a Abadia de Saint-Germain-des-Prés, então em obra de remodelação, e tinha localizado uma das pedras removidas pelos pedreiros que continha toscamente o poema do Clérigo Alexandre.

O catálogo dizia ainda que o manuscrito oferecido estava em Agrigento, na Sicília, e se tratava de “um velo raríssimo, contendo numerosas letras ornamentais e duas miniaturas finamente executadas, em bom estado de conservação; uma representando a Purificação da Virgem e a outra a Coroação de Proserpine”.

O ano era 1850 e Sylvester Bonnard, contrariando sua governante Hélène, que o admoestava à moda de Sancho Pança, reuniu valises e necessidades, e, munido de chapéu e bengala encastoada de prata, partiu para a terra de Empedocles, sentindo-se um Dom Quixote com lanças e cuia de queijo Palmyra (que não existia então, mas parecia!) enfiado na cabeça, em busca de seu tesouro, seu estudo maior, de mais de quarenta anos da Gália cristã, especialmente dessa gloriosa Abadia de Saint-Germain-des-Prés, de onde saíram tantos reis-monges que fundaram a dinastia merovíngia, a partir da fundação pelo rei Childebert.

 

 

2º Tema

Sacré-Coeur e o pecado de todos nós.

 

Fala-se de Cristofobia.

Alguns dizem que não existe, só porque o Presidente Bolsonaro o denunciou em discurso na ONU.

Todavia, no noticiário se vê cada dia, ataques a igrejas; na França, no Chile, e aqui também em críticas lançadas ao vento, sem alento.

A Igreja sempre teve seus inimigos, e agora, porque vazias, parecem perecer indefesas perante ataques anônimos, ou quase igual, por covardia.

O covarde sempre se esconde na chama que incendeia o fogaréu pretendido.

Agora mesmo vem da França uma polêmica.

Artigo de Claire Bommeler no Le Figaro 21/10/2020

Estou a ler, em matéria magnífica de Clair Bommelaer do LeFigaro de hoje, 21 de outubro de 2020, que desejam tornar a Basílica de Sacré-Coeur, erguida na colina de Montmartre, cartão-postal de Paris, em patrimônio nacional da República Francesa.

A decisão, que deveria ser tranquila, aviva sérias discussões que nós, comuns mortais de outras plagas, pensávamos não existirem.

A Basílica de Sacré-Coeur, tão doce em suas alvuras, abençoando a cidade-luz do alto, enseja memórias, que eu nunca soubera, nem supusera, em tanta repulsa e restrição, sobretudo agora quando vivemos tempos laicos, quiçás, tolerantes.

Em verdade, Paris nunca foi uma cidade tolerante em questão religiosa.

Todos sabemos dos excessos cometidos por protestantes e católicos, nos idos de Catarina de Médici, o Massacre de São Bartolomeu, semi-pacificados a partir do Edito de Nantes, no distante 1598.

Também foi muito grande a perseguição religiosa por conta do Terror da Revolução Francesa.

Mas, eis que duzentos anos se foram, e a luta religiosa continua a colocar crentes contra descrentes, e a Basílica, que está a completar cento e cinquenta anos de vida, relembra muitas ferida em tanta cicatrizes nunca curadas.

Se por traz de seu aspecto alvo e sem manchas, sua decoração suntuosa e seu estatuto de santuário de adoração eucarística e misericórdia divina Sacré-Coeur não consegue apagar a brutalidade que lhe cercara, por conta de sua ereção no Monte dos Mártires.

Montmartre foi o local em que a abadia fora construída em remissão dos mártires da grande derrota francesa de 1871, considerada uma “punição divina”, perante as forças alemãs comandadas por Bismark.

Acontece que tal derrota ensejaria os infaustos acontecimentos da Comuna de Paris, que também estará completando 150 anos, e que foi esmagada com a matança de cerca de 20 mil “communards”, como assim se denominavam os insurretos, que quiseram dominar a nascente III República, como primeira Revolução Comunista, então louvada por Marx.

Como os “communards” começaram a matar, generalizadamente, aqueles a quem denunciavam em praça pública como açambarcadores e inimigos do povo, a reação foi-lhes terrível, tendo os setores ligados ao clero, então direita francesa, apoiado e estimulado a fuzilaria.

Assim, a Basílica de Montmartre ficou com esta face sombria, hoje denunciada pelos partidos de esquerda, uma miríade deles, e pelos segmentos exaltados das lojas maçônicas, que, por nascedouro, sempre foram anticlericais.

Relembram agora, que longe de ser construída em memória dos guerreiros de Sedan, sua primeira pedra foi batida com preces e sermões para “expiar o crime dos communards”.

À parte tudo isso, tudo é História.

E, se as paixões se arrefecem, a História gosta de se repetir, só para cometer os mesmos erros.

Agora mesmo, a gente ouve os mesmos ecos em propostas distantes de planos eleitoreiros; “tirar dos ricos para dar aos pobres”, o Estado, virando bom provedor, em promessas lautas de muitas bolsas, em baixo IPTU, podendo desapropriar e bem repartir, o meu e o seu, e de quem o tiver; “numa boa”!

Se, nem Jesus que castigava os infiéis foi incapaz de repartir o céu na terra, e o perdão suscita até expiação por oração, a esquerda francesa está azeda com essa proposta de tornar a Basílica do Morro dos Mártires em patrimônio da República, e por certo, vindo a receber alguma vantagem de ordem financeira, nesses tempos de bolsos vazios.

Infelizmente, os Católicos veem diminuindo as espórtulas, e assim tudo isso é visto com motivação pecuniária.

Há, todavia, uma discussão raivosa por vindita.

Seus argumentos explicitam o caráter laico da República

Em verdade, o laicismo só vem sendo citado ultimamente porque o islamismo vem crescente na Europa, e isso está incomodando em demasia, afinal enquanto as Igrejas se esvaziam, proliferam-se mesquitas, justo na França, a joia primeira da cristandade.

Realmente, os princípios republicanos são laicos. E ser laico é permitir todas as crenças.

O problema não é de crença.

É de descrença, mesmo!

Hoje, está na moda não ter crença; ser ateu, ser agnóstico, e ser até pernóstico, poder chacotear com a crença dos outros, e assim o noticiário comenta o degolamento de um Professor, à faca fria, mal amolada.

Bem mais amolados, porém, estão os que odeiam a Basílica de pedras alvas.

Para estes, não basta relembrar que cinquenta anos passados Jean-Luc Goddard e Jean-Paul Sartre lideraram uma grande campanha pela criação de uma quadra homenageando a anarquista Louise Michel (Enjolras), enquanto símbolo communard, só para forçar que os peregrinos por ela passeiem antes de adentrar a Igreja.

Agora, a título de comemoração dos 150 anos da Comuna de Paris, um grupo de Deputados quer votar um texto proclamando a reabilitação de todas as vítimas de sua repressão por um dever de História e de justiça.

“Modus et rebus”, tudo vale a pena como marcara a pena de Pessoa, que nada tivera com isso.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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