Recorde de emendas e rigidez constitucional: o que fazer?

No texto aqui publicado em 11/05/2022 (“A recordista produção de emendas constitucionais em 2022”), apontamos que a intensa atividade reformadora da Constituição neste ano de 2022 até então (haviam sido promulgadas, no ano, sete emendas constitucionais, sendo que já havia sido finalizada a aprovação de uma oitava emenda que iria logo ser promulgada) traduzia um recorde, pois nunca antes com apenas cinco meses do ano alcançáramos essa quantidade de emendas devidamente aprovadas e promulgadas.

Pois bem, de lá para cá a volúpia emendadora da Constituição não reduziu a sua intensidade; ao contrário, em apenas mais dois meses e meio, foram aprovadas e promulgadas mais três emendas à Constituição – sendo que as três promulgadas na mesma data (!), 14/07/2022 (Emendas 123, 124 e 125) – tornando-se então um novo recorde, pois nunca antes havia sido alcançada a marca de 11 (onze) [!!] emendas constitucionais aprovadas em um único ano, e considere que ainda estamos na sua metade.

A emenda 123 – que ficou conhecida como “emenda kamikaze” –  “Altera o art. 225 da Constituição Federal para estabelecer diferencial de competitividade para os biocombustíveis; inclui o art. 120 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para reconhecer o estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes; autoriza a União a entregar auxílio financeiro aos Estados e ao Distrito Federal que outorgarem créditos tributários do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) aos produtores e distribuidores de etanol hidratado; expande o auxílio Gás dos Brasileiros, de que trata a Lei nº 14.237, de 19 de novembro de 2021; institui auxílio para caminhoneiros autônomos; expande o Programa Auxílio Brasil, de que trata a Lei nº 14.284, de 29 de dezembro de 2021; e institui auxílio para entes da Federação financiarem a gratuidade do transporte público”.

A emenda 124 “Institui o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira.”.

E a emenda 125 “Altera o art. 105 da Constituição Federal para instituir no recurso especial o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.”.

Cada uma delas, por si só, merece comentário mais específico e detalhado, o que procuraremos fazer em textos a publicar nas semanas seguintes, pois efetuam inúmeras transformações nos regramentos constitucionais sobre matérias da maior relevância político-institucional e também processual.

Mas o nosso ponto aqui é a reflexão sobre a rigidez e a mínima estabilidade que os textos constitucionais precisam possuir, e a discussão sobre se, nesse cenário de alta volubilidade política, a Constituição de 1988 ainda se pode considerar uma constituição rígida.

Com efeito, se Constituição rígida é aquela que impõe mecanismos e procedimentos mais solenes e dificultados para sua reforma, a exemplo de iniciativa restrita, quóruns qualificados de aprovação, dois turnos de votação, impossibilidade de reapreciação de matéria rejeitada na mesma sessão legislativa, além de um núcleo material intangível ao poder de reforma (as “cláusulas pétreas”), a Constituição de 1988 possui tudo isso e mesmo assim atinge esse patamar de 125 emendas aprovadas ao longo de 34 anos [uma média de 3,5 emendas por ano (!)] fora as 6 “emendas constitucionais de revisão” aprovadas durante a revisão constitucional realizada entre o segundo semestre de 1993 e o primeiro semestre de 1994.

E se é verdade que boa parte dessas emendas é explicada pela necessidade de alterar conteúdos constantes da Constituição que bem poderiam estar regrados em nível infraconstitucional, por outro lado é também verdadeira a importância, dado o princípio constitucional da vedação do retrocesso social, que conquistas materiais em se tratando de direitos fundamentais e imposição de políticas públicas de atendimento aos interesses sociais e econômicos sejam formalizadas em nível hierárquico constitucional.

Nessa toada, a explicação para o fenômeno se daria no campo da política: os mecanismos da rigidez e da mínima estabilidade constitucional estariam presentes, cabendo à população em sua diversidade formar (pelo voto) composições congressuais que não conduzissem a situações como a de maiorias parlamentares tão amplas e estáveis como a da atual legislatura, capazes de impor alterações constitucionais sem precisar se dispor a quaisquer negociações políticas sérias e programáticas. Ainda assim, no campo da política, teríamos de enfrentar os problemas decorrentes do modelo de “presidencialismo de coalizão” e o fisiologismo explícito da atuação parlamentar, de que é maior evidência o denominado “centrão”.

De todo modo, ainda que formalmente os mecanismos e procedimentos da rigidez constitucional estejam presentes na Constituição, há uma lacuna política que urge preencher. É inadmissível que a Constituição dita Cidadã se permita reformas estruturais de alta envergadura em seu conteúdo e materialidade sem que sejam submetidas a aprovação popular direta.

Já em 2005, a Ordem dos Advogados do Brasil, com apoio de diversas outras entidades sociais representativas e condução intelectual de Fábio Konder Comparato, apresentou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma política com o objetivo de potencializar os mecanismos de democracia participativa preconizados na Constituição, com os seguintes itens prioritários: 1) criar a iniciativa popular de plebiscitos e referendos; 2) permitir ao povo decidir por plebiscito sobre a realização das políticas econômicas e sociais previstas na Constituição, bem como sobre a concessão de serviços públicos e a alienação do controle de empresas estatais; 3) tornar dependente de decisão popular a alienação de bens pertencentes ao patrimônio nacional; 4) estender o referendo a emendas constitucionais e a acordos ou tratados internacionais; 5) tornar obrigatório o referendo de quaisquer leis em matéria eleitoral; 6) estabelecer preferência na tramitação de projetos de lei de iniciativa popular e impedir a alteração ou a revogação de leis de iniciativa popular sem a concordância do povo (MONTEIRO, 2014).

Cada vez mais o tempo deu razão a essa proposta. Diversas dessas emendas constitucionais foram aprovadas ao largo de maior discussão popular, e muitas delas trataram de enormes transformações no nosso pacto social com impacto direto e imediato em nossas vidas.

Já passou da hora de rever esse ponto, que precisa com a máxima urgência ser relançado ao debate público e assumido como compromisso de atuação política e de governo, a ser sufragado nas eleições gerais que se avizinham.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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