O Crime de Sylvestre III – Final

Jeanne Alexandre, a garota órfã, filha de Clementina o inesquecível amor de Sylvestre Bonnard, era aluna interna num Instituto educacional dirigido por liderança férrea de Mademoiselle Virginie Préfère, na Rua Demours em Ternes.

Virginie Préfère, era uma Virgínia Preferida, nunca eleita nem escolhida para ser uma Madame, a esposa de alguém, ser rainha de um lar, seu amor e sua atenção.

Como é bem comum nestes modelares exemplos, Preferida achava-se o protótipo exemplar a ser seguida, enquanto instrutora, punindo com castigos físicos e psíquicos os eventuais desvios de seus educandos, sem permitir os eventuais arroubos juvenis, por melhor costume ou disciplina, podando muitas vezes o caráter e a criatividade das jovens, eliminando-lhes o sorriso e a alegria, tudo que embeleza o viver e o existir.

O setentão Sylvestre Bonnard, homem devotado aos livros e à beleza da criação, tinha conhecido a garota Jeanne Alexandre, em meio a muitos sorrisos, na mansão do casal De Gabry, onde fora inventariar uma biblioteca, único acervo da massa falida, fruto dos negócios ruinosos de genitor da mocinha.

Os De Gabry adoravam a garota que os visitava em férias.

Isso, porém,  nem sempre era autorizado pela Senhorita Préfère, nem pelo seu tutor, o Senhor Mouche, de mosca mesmo, que geria e zumbia por sobre a massa falida dos pais da órfã.

Sylvestre Bonnard planeja então, cuidar da garota, ser seu tutor, quem o sabe, ser o pai que nunca fora, dar-lhe um pouco do amor que devotava a sua mãe, aquela mesma Clementina, que fora o amor de sua vida.

Desnecessário dizer que em primeira visita à menina no orfanato da Senhorita Prefere, esta não viu a chegada de Bonnard com bons olhos, colocando algumas dificuldades para que visse a garota, alegando que estava impedida, por cumprir reclusões e obrigações, por maus comportamentos e baixos desempenhos escolares.

Tais obrigações, ver-se-ia depois, eram um misto de castigos, serviços domésticos, dormitórios isolados e escuros, tudo que alguém desprovido de autonomia é compelido a cumprir na absoluta falta de defesa numa instituição reclusa de seres esquecidos pela sociedade.

Em verdade, Sylvestre, um homem idoso e simples, parecera à educadora alguém desprovido de alguma importância, de modo que foi relutante conseguir um pequeno contato com a garota que apareceu trêmula e apreensiva.

Sylvestre, porém, se não era alguém rico em móveis e imobilizados, o era em títulos e comendas, becas, palas e capelos, por membro proeminente de todos os Institutos e Academias da França, fosse esta Imperial, Monárquica ou Republicana, uma unanimidade referida e respeitada ao longo de décadas, referendadas por todos os governos que se seguiram num século politicamente conturbado.

E por ser assim, houve logo uma autorização plena do Senhor Mouche, (o tutor-mosca, chamemo-lo assim), para novas visitas, mosca porque, o esperto notário logo percebera algo doce a auferir, em um eventual pouso inesperado.

Inesperadamente, as portas e o olhar de Mademoiselle Préfère abriram-se em deslumbre quando Bonnard chegou para uma nova visita.

A Senhorita Préfère era destas mulheres que se encantam com uma capa talar, tão negra quão luzidia.

Ver um capelo emplumando uma careca, uma esteta pala à babadouro, e uma gola floral bem engomada rodeando um pescoço pelancudo, era-lhe mais admirável naqueles tempos seculares que uma batina de monge, de bispo ou arque epíscopo cardeal, desde que bem cintada estivesse na pança de um sábio, ornando todas as falências e obesidades, tudo aquilo que Bonnard relutava em exibir nos sodalícios e chás sorumbáticos, mas tinha que fazê-lo, vez por outra, nas confrarias literárias que pertencia.

Por conta de tantas becas e mecas imaginadas, as visitas foram renovadas, as duas, discípula e mestra, visitando também a residência de Bonnard, em retribuição e aproximação, Préfère xeretando os seus confortos e a “Cidade dos Livros”, como assim Bonnard chamava a sua biblioteca famosa.

A Senhorita Préfère, logo armou uma preocupação com o velho escritor, demonstrando-lhe um desassossego que lhe causava noites insones: – “Como deixá-lo naquela casa aos cuidados da governante Thérèse, fiel servidora e anjo da guarda de Bonnard, que envelhecera também, e talvez não cuidasse dele a contento?

Em verdade, Préfère encantou-se com a possibilidade de dar uma “casada” com o velho pesquisador, arrumando inclusive uma tratativa com o Senhor Mouche, o tabelião mosca tutor, para viabilizar o enlace do casal reunido, quando tudo seria resolvido, com Bonnard e Préfère virando os responsáveis documentados da garota órfã.

Uma reunião foi convocada e Mouche chegara a unir as mãos de Préfère e Bonnard tentando enlevá-los para um futuro feliz a conquistar.

Foi aí que o velho sábio desfez o acerto delicadamente: – Madame, eu não me expliquei bem e você me compreendeu mal. Eu não quero me casar. Seria, na minha idade, uma imperdoável loucura, e eu me espanto que uma pessoa como a senhora pensasse em me dar um conselho nesse sentido. Eu sou um velho desambientado do mundo, pouco afeito à linguagem das mulheres. Perdoe-me se lhe dei uma impressão diferente”.

Escusado dizer que a senhorita Préfère nunca se achara tão desprezada.

A reunião acabou em parcas despedidas e, como esperado, a órfã Jeanne Alexandre iria, daí para frente, comer o pão que o diabo amassou.

Seguiram-se meses em que a órfã passara de aluna a serviçal, rebaixada do banco escolar e dos livros, para melhor dar brilho aos pisos, caçarolas e privadas, sem falar dos muitos penicos no internato utilizados, que precisavam ser rotineiramente recolhidos, esfregados e higienizados, qual serva não remunerada, afinal o tutor-mosca assim o delegara por desprovimento de fundos de sua herança.

Afora tudo isso, Sylvestre Bonnard, com todos os títulos e honras, fora declarado persona non grata no Instituto Préfère, sendo-lhe impedido, qualquer contato com a órfã Jeanne Alexandre, que no tempo distante ainda estava, menos de dois anos, para atingir a sua liberdade, por maioridade.

Como o tempo exauria suas forças, Bonnard cometeria erros impensáveis a tisnar seu comportamento.

Primeiro subornou a porteira do Instituto Préfère conseguindo falar com a órfã, que lhe contou suas amarguras.

Depois estudou uma maneira de viabilizar um sequestro combinado com a garota para levá-la para longe dali.

Terceiro, executou o sequestro levando Jeanne Alexandre para a casa dos De Gabry, velhos amigos da órfã.

Sequestro executado, eis que o Senhor De Gabry o alertou do grave crime cometido, em diálogo que bem vale repetir:

O que você fez, meu amigo, foi apropriação indébita de menor, rapto, sequestro! Você tem um problema em suas mãos. Você está simplesmente sujeito a não menos que cinco a dez anos de prisão.

Misericórdia! – gritava Bonnard – dez anos de prisão por ter salvo uma criança inocente?!

É a lei! – Respondeu o Senhor Gabry  – Ninguém pode alegar desconhecê-la.  Eu sei que Mouche é um patife e Préfère é alguém cuja palavra pior é insuficiente,… mas, é a Lei! Leia aqui: Dos Crimes e delitos, Art. 354. Quem, por fraude ou violência, tiver sequestrado ou feito sequestrar menores, ou os tiver arrastado, desviado ou movido, ou feito com que sejam arrastados, desviados ou movidos dos locais onde foram colocados por quem detém autoridade ou direção a que foram submetidos ou confiados, sofrerão pena de prisão. Ver código penal, 21 e 28. – 21. A duração da prisão será de pelo menos cinco anos. – 28. A pena de prisão conduz à degradação cívica. Isso está muito claro, não é, Sr. Bonnard?

Perfeitamente claro.

Continuando: Art. 356. Se o sequestrador ainda não tiver vinte e um anos, só será punido com um … Certamente não podemos invocar este artigo, você tem quase setenta! Art. 357. Caso o sequestrador tenha se casado com a moça que sequestrou, só poderá ser processado mediante denúncia das pessoas que, de acordo com o código civil, têm o direito de requerer a nulidade do casamento, nem condenado somente depois que a nulidade do casamento foi pronunciada. Não sei se está nos seus planos se casar com a senhorita Alexandre. Você vê que o código é uma boa diversão e que abre uma porta para você desse lado. Mas é errado brincar, porque sua situação é péssima.Como um homem como você poderia imaginar que na Paris do século 19, você poderia sequestrar uma jovem impunemente? Não estamos mais na Idade Média e os sequestros não são mais permitidos.

Eu sei – assentiu Bonnard – Não pense que o sequestro era permitido pela lei antiga. Você encontrará em Baluze um decreto do rei Childeberto em Colônia, em 593 ou 94, sobre este assunto. Quem não sabe, aliás, que a célebre ordem de Blois, de maio de 1579, afirma formalmente que quem vier a ter subornado filho ou filha menor de 25 anos, a pretexto de casamento ou de outra interesse, sem testamento  ou consentimento expresso do pai, mãe e responsáveis ​​serão punidos com a morte? E da mesma forma, a portaria acrescenta, que serão punidos extraordinariamente todos aqueles que tenham participado desse sequestro, e que tenham dado conselho, conforto e ajuda de qualquer forma. Estes são, ou mais ou menos, os próprios termos do procedimento. Quanto a este artigo do código Napoleão que acaba de me dar a conhecer e que exclui da acusação o sequestrador casado com a jovem que sequestrou, lembra-me que, segundo o costume da Bretanha, o sequestro seguido de casamento não era punido. Mas esse uso, que causava abusos, foi abolido em 1720. Eu lhe dou esta data tão exata quanto os dez anos mais próximos. A minha memória já não é muito boa, e já se foi o tempo em que podia recitar de cor, sem respirar, mil e quinhentos versos de Girart de Roussillon. Quanto ao Capitular de Carlos Magno, que regulamenta a indenização pelo sequestro, só não lhe falo, Senhor Gabry, é porque esse valor não me vem à memória. Esse sequestro foi considerado um crime muito punível nas três dinastias da velha França. É um equívoco pensar que a Idade Média foi uma época de caos. Imagine, pelo contrário!

O Senhor De Gabry interrompeu : Se você sabia porque o fez? Mas, não faça nada, meu caro Monsieur Bonnard. Pelo amor de Deus e por você, não faça nada. Seu negócio é ruim o suficiente. Vá para casa. Como é tarde demais para levar a jovem de volta, deixe-a conosco. Minha esposa cuidará bem dela, e e amanhã procuraremos o Mouche-Mosca, pensando como resolver o imbróglio.

Bonnard voltou para casa, com o espírito assombrado.

Assustava-o a possibilidade de processo, de prisão e de degradação pública. Iriam denunciá-lo como um velho libertino; um tarado envilecido?

Iria ver o canalha, Mouche-Mosca, fazer o diabo para torná-lo inofensivo. Porque tudo dependeria dele.

Como Deus põe e o diabo propõe, o dissoluto fora Mouche-Mosca que uma vez procurado tinha sumido.

Sumido como, se ninguém o soubera?

E quem o saberia em tantos negócios escusos escondidos?

O Senhor Mouche-Mosca tinha fugido na surdina com uma menina “de-menor”, sob sua confiança e tutela, para grande escândalo da sua vizinhança, afinal o notário lascivo dera um enorme calote financeiro a todos a quem prestava bons serviços e conselhos.

Não havendo acusador, não houve crime. E Sylvestre Bonnard, Jeanne Alexandre e a governante Thérèse passaram a viver muitas alegrias na “cidade dos livros”, onde agora ronronava um novo gato, não tão bonito e gordo como Hamilcar.

O novo gato, feio, desnutrido e abandonado fora apanhado na rua por Jeanne, mas que logo recebeu o nome de Hannibal porque passou a se espichar no conforto da biblioteca Bonnard.

Depois, como sempre acontece, um dos alunos de Bonnard interessou-se pela órfã muito bela, pedindo-a em casamento, enlace bem concedido que lhe chegou até com um dote, como era comum acompanhar as moças bem nascidas.

Como o pólen levado pelos insetos às flores cumprem a sua missão, um menino, o pequeno Sylvestre, chegou ao casal, de quem falarei pouco em tantas alegrias trazidas, para o velho escritor, que jamais teria pensado em ser pai e ser avô quando a vida lhe fugia.

Assim eis Sylvestre Bonnard, bem velho, noventa e mais anos talvez, relendo suas memórias, confessando o seu feliz crime, do qual nunca padeceu.

E eu que ao reler seu crime novamente, resolvi relatá-lo ao meu sentir, por não querer escrever sobre eleições, o pleito americano perdido por Trump, ou conflitos outros dos quais me distancio.

Que os meus leitores me perdoem, se a escolha não lhes foi de  bom proveito.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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