Os trens que agora partiram

Disse-nos Milton Nascimento, com sua poesia, que um trem simboliza a “vida desse meu lugar”. É que ele, ao parar numa estação, é chegada, partida, esperança, despedida e adeus. No trem todos são livres, absolutamente, livres para escolher partir ou ficar. Nele, a viagem pode ser tão longa quanto possa alcançar o pensamento, ou tão perto quanto seja a acomodação. Nesse ininterrupto movimento, todos, direta ou indiretamente, são passageiros, ferroviários, comissários, penetras, condutores e familiares da mesma locomotiva que partirá levando em seus vagões a esperança de uma grande viagem. 

Lembrei-me de Milton Nascimento nas diversas trocas de governantes e dirigentes da OAB ocorridas no iniciar de janeiro. A “vida desse meu lugar” é também a “vida desse meu governo”. Não poderia ser diferente, pois, uma mudança de um administrador também implica em chegada, partida, esperança, despedida e adeus. Ainda mais quando, partindo da “Estação das Urnas”, a locomotiva pretende ser chamada de “Trem da Mudança”. Neste caso, a expectativa do surgimento de um modelo de gestão diferenciado corre livre no trilho traçado pela política, velozmente interpretada em cada gesto ou palavra do novo governante.

Mas como o “Trem” não pode ser conduzido sozinho, a atenção se voltou, logo no partir, para aqueles que cuidarão de ajustar o maquinário e ajudar ao condutor. Todos eles imprescindíveis para garantir uma boa viagem. Todos eles com importância estratégica, pouco importando o local da lotação. Todos eles, embora com tarefas distintas, afinados com o próprio querer da condução. Todos eles sabendo que o desalinhar de um vagão pode comprometer o trajeto, fazendo tombar o comboio. Todos eles sabendo, previamente, que a vida conduzida precisará “retornar por detrás das montanhas azuis, trazendo de longe as cinzas do velho aeon, fumegando, apitando e chamando os que sabem do trem”. 

Nomear, por exemplo, um maquinista lento significa atrasar cada partida, assim como optar por um ineficiente simboliza o insucesso preanunciado. Conservar os viciados no percurso antigo põe em risco uma indesejada ré ou a frustração dos passageiros embarcados. Escolher alguém que prioriza os projetos pessoais faz desembarcar prematuramente os projetos coletivos, da mesma forma que apoiar o rancor possibilita emperrar a solidariedade. Indicar, enfim, pessoas afinadas com o plano de viagem do condutor, é a receita para que não tudo ocorra conforme o prometido, partindo o trem firme outras e outras vezes.

O bom condutor não pode desconhecer a importância do fator humano, ainda a estação e o próprio trem estejam bonitos, modernos e dignos de serem usados na próxima viagem. Ele deve compreender a necessidade do prédio, das obras, dos projetos realizados, da tecnologia e dos materiais utilizados para funcionar a locomotiva. Mas, sobretudo, sabe ele que sem o homem e o seu desejo de conquistar um novo mundo, o trem não se moverá, virará sucata ou peça de museu. Um trem é feito para viajar, não para servir de mostruário ou vitrine de exposição. 

De nada adiantará, portanto, a sua bela estrutura física e suas estações se não houver a alma do homem no projeto de fazer o trem permanentemente andar. Neste sentido não se pode esquecer aqueles que ficam na estação, trabalhando em seu maquinário, consertando anonimamente cada peça que se quebra ou que se corrói, fazendo a sua manutenção diária, sem esperar um agradecimento, sem objetivar um simples obrigado, mas felizes quando o trem apita chegando ou partindo. Este que voluntariamente ficam sabem, como ninguém, que é normal e necessário o ir e vir, assim como são importantes o movimento das ondas para a vida do mar.

Não se tem dúvida, por fim, que os vários trens que agora partiram encontrarão outras estações, sentirão tentações incontáveis, acumulando vitórias e sofrendo derrotas. Mas o sucesso do trem somente ocorrerá para aquele que trilhar ao som do apito utópico da história e da cidadania triunfante, conduzido, sempre, pelos homens e mulheres que não tiveram medo de enfrentar a tempestade do preconceito, da concentração de renda e da desigualdade social. Este, ao final da jornada, descansará, aliviado por algumas horas, para mais um jornada que logo se reiniciará.

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