“Samiadores de miséra”.

Quando eu era menino, menor de dez anos ou pouco mais, eu passava as férias escolares numa fazenda, no interior do Estado.

No mês de julho plantava-se cana.

Quando era verão, a cana era colhida e levada para as Usinas da região em carros puxados por juntas de boi.

Menino da cidade, a vida no meio rural me era toda nova.

O que eu não aprendia na cartilha, na trilha campesina despertava.

O carro de bois, por exemplo, eu só conhecia por lição de leitura.

E eu era bom de leitura.

Ruim mesmo, eu só era de ditado; péssimo!

Graças à tecnologia, hoje possuímos corretores de texto, que nos fazem debuxadores e debochadores em qualquer língua: pátria ou exótica!

Agora, analfabetos em diversos idiomas, podemos redigir até em Mandarim e Hindi!

Cito Mandarim e Hindi, porque são línguas bem faladas no mundo, disputando com o inglês e batendo sobremodo no nosso português.

Bilhões de chineses conversam em Mandarim, e o Hindi por centenas de milhões de indianos, entre centenas de dialetos.

Aos que trocam o i pelo u, esclareço que o idioma é Hindi e não Hindu.

O Hindi é que possui gramática, uma entre dezenas de outras linguagens oficiais da velha Índia.

Já o Hindu é fé emblemática, muito antiga, datada dos poemas védicos, coisa do Ramahiana e do Mahabharata, norteados em crença politeísta, com a tríade Brahma, Vishnu e Shiva, em criação, conservação e destruição necessárias, e outros deuses como Krishna, Shakti, Lakshmi e Ganesh, o deus sorridente da cabeça de elefante.

A Índia pertence também às minhas memórias, quando a percorri durante um mês por estradas poeirentas em epopeia nada parecida àquelas encenadas nos filmes de Simbad e de Indiana Jones, não tão recentes.

Mas, deixando o périplo ao longo do planalto do Decão, volto a minha infância só para falar da palavra samiar”, verbo por mim descoberto nas plantações de cana que vi e como aprendi.

A plantação de cana começava sulcando a terra mediante um arado, puxado por junta de boi.

O arado, hoje quase em desuso, deu lugar aos discos e grades que revolvem a terra, mediante tração mecânica.

Naquele tempo a mecanização da lavoura era um sonho americano muito distante e caro.

A terra era sulcada via arado, uma espécie de seta tridimensional, sendo formado na horizontal por um triângulo isósceles, cujo ângulo agudo terminava em uma ponta de aço destinada a rasgar a terra, enquanto na vertical havia uma bifurcação semelhante a um guidom de bicicleta, destinado ao comando do instrumento e seu equilíbrio.

Se o boi tracionava o arado, forçando o vértice pontiagudo progressivamente à frente o homem, o arador, segurava os outros dois vértices verticais, equilibrando-os de tal modo, que na terra fosse traçado o sulco, sem desvio, numa ida e vinda sucessiva, espécie de escrita, por muitas linhas paralelamente bem riscadas.

Saber arar a terra não era para todo mundo.

O arador tinha uma relação carinhosa comandando a junta de bois, na frente sempre indo um menino da minha idade como “chamador-de-bois”.

Contando tudo isso agora, alguém poderá dizer que eram tempos exploradores de um trabalho escravo, ou quase-escravo, sem falar do abuso em uso do trabalho infantil.

Algo muito incivil, inconsequente com a necessidade de viver e comer sem ter que pedir esmolas, como acontece nas grandes cidades.

Do trabalho agrícola, há uma lição latina, que fala da invasão de Bárbaros, em que os cidadãos patrícios vão buscar em Cincinato o comando das defesas.

Cincinato arava a terra quando é convidado a ser Ditador e organizar a defesa de Roma em Ludus Primus do Pe. Milton Valente – 1959

O desvio se impõe porque Lúcio Quíncio Cincinato estava arando a terra de sua fazenda, enquanto ofício normal campesino, quando os citadinos e bem letrados romanos foram lhe implorar que comandasse os exércitos assumindo a condição de Ditador da República terrivelmente ameaçada.

 

De Cincinato, fala-se também, que vitorioso toda vida, colhia nos tempos pacíficos a ingratidão de seus patrícios, de modo que, uma vez cumprida a sua missão, retornava ao seu arado, a sua melhor distração.

 

Se arar a terra, no tempo da minha infância era um difícil labor, o mesmo se pode dizer da “samiação”.

Porque tinha a “samiação” e  a “pranta”.

A semeação pelos meninos e a plantação executada por homens e mulheres no cabo da enxada.

O processo, embora não tivesse um procedimento em série, havia uma sequência com muitos braços envolvidos.

Primeiro a cana era cortada em pedaços de trinta centímetros aproximadamente, de modo a incluir três a quatro nós entre gomos.

Suculências desfrutadas à parte, porque sempre sobrava um gomo a sorver, competia aos meninos, e eu o fiz muito em folguedos, arrumar pequenos feixes destas sementes para distribui-las, uma a uma, nos sulcos bem rasgados pelos arados, ”apilando” com os pés, a fim de que os plantadores, logo atrás dos “samiadores”,  cobrissem  com terra o “sameio” usando as enxadas.

Se os pés de tantos se gastaram e se perderam em muitas pegadas esquecidas, no nosso viver, a tríade Hindu em criação, manutenção e aniquilamento se faz bem presente: há homens, que plantam, outros que conservam e mantém, e outros que, infelizmente, só sabem destruir.

O tema bem vale afinal, em tanta ciência mundo à fora, nunca se viu tantos “samiadores de miséra”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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