O que há debaixo do tapete de Wembley?

Jairo Fernandes da Silva Júnior

Mestre em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (PGH/UFRPE)

Integrante do Laboratório de História do Tempo Presente (HTP/UPE)

 

Fonte: https://www.netflix.com/br/title/80995039

 

A partida entre as seleções da Inglaterra e Itália pela final da Eurocopa 2020 passou de um espetáculo para um fato de ressurgência do racismo. Alguns jogadores ingleses, que perderam as penalidades cobradas durante a disputa, receberam insultos racistas de torcedores. Bukayo Saka, Jandon Sancho e Marcus Rashford foram alvo de mensagens e emojis que representam macacos e gorilas nas redes sociais.  Aquele dia poderia ter sido de mais uma vitória da seleção italiana, a qual causou inveja a muitos com uma campanha madura e consistente durante a competição, mas foi marcada por mais um episódio de ódio.

Durante a realização dos jogos do campeonato europeu de seleções, que ocorreu em 2021 por conta da pandemia do novo coronavírus, pautas foram levantadas após o episódio de parte da torcida húngara ter se posicionado contra comunidade LGBTQIA+ (sigla que indica a diversidade social entre lésbicas, gays, bissexuais, trans, queers, pansexuais, agêneros, pessoas não binárias e intersexo). As autoridades alemãs reagiram diante do fato iluminando o estádio de Munique com as cores que representam o movimento social.

Aparentemente plural, o esporte bretão mostra suas raízes de tempos em tempos, principalmente em caso de derrotas. Em estudos sobre a gênese do esporte, Norbert Elias e Eric Dunning apontaram o lugar do futebol. O ambiente fabril, essencialmente masculino, e a disputa entre burguesia e proletariado impulsionaram disputas e tensões. Com o passar do tempo, as demandas mudaram no continente europeu e o outro conveniente foi estabelecido como aquele que vem de fora, o imigrante. Nesse sentido, as crises migratórias no nosso tempo e o mimetismo digital deram voz a quem nunca dorme. O caso de racismo contra os jogadores ingleses reflete a incapacidade de reconhecer o passado, enxergar as profundezas da dor do outro e assumir consequências coloniais.

O passado sombrio e as profundas consequências da colonização nos países africanos representados pela riqueza holandesa é o tema da série Ares, lançada na Netflix em 2020. Dirigida por Pieter Kuijpers, Iris Otten e Sander van Meurs, traz a história da promissora estudante de medicina Rosa Steenwijk (Jade Olieberg), a qual ingressa em uma sociedade secreta que se baseia nos tempos “de ouro” da Holanda durante os anos 1600. Conforme o tempo passa, Steenwijk precisa decidir se continua ou não naquele lugar. A sequência de episódios parece assumir um compromisso imperceptível com o espectador. Narrativa lenta, enigmas densos e personagens efêmeros permeiam as longas tomadas. Quem assiste, certamente, fica entre duas opções: insiste e se apega ao compromisso de que valeriam a pena aquelas horas, e os que desistem pela profundidade e o peso da moralidade.

O roteiro montado com incertezas para quem assiste fez com que críticos elogiassem a forma surpreendente que termina a série. Na última tomada do último episódio, é revelado que o que move a riqueza da seita, as movimentações políticas e os desejos sádicos de alguns personagens: o sangue e o suor do povo negro e escravizado durante a colonização dos séculos XVI e XVII. A estética sessentista somada à realidade contemporânea entrelaça o desejo de construir uma metáfora com as formas como o racismo estrutural se monta na Europa no Tempo Presente. Reforça que, debaixo de cada grande constructo europeu ou por trás de cada decisão política, há o sentimento de superioridade adormecido.

Ares é uma denúncia que nos leva à reflexão para o campo do concreto e nos faz perguntar: “Do que é feita a Europa?”. Nesse sentido, é fundamental lembrar que Wembley foi construído por cima da força de trabalho do povo explorado pelos ingleses; as festas proporcionadas pelo futebol e a animação nos pubs londrinos são parte integrante de uma história de domínio. Os insultos aos jogadores representam, além do ódio, a incapacidade de reconhecer que o futebol é um esporte que proporciona pluralidade, oferece caminhos para democratização e que parte dos europeus não passaram o passado a limpo.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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