O Polêmico Programa “Mais Médicos” – Parte IV

Continuamos a série de textos sobre o programa “Mais Médicos” – instituído pela Medida Provisória nº 621/2013 (forma jurídica inadequada, conforme comentamos na Parte I), com o objetivo de debater os aspectos jurídicos desse programa governamental.

Dentre as novidades – certamente a mais polêmica de todas – o “Projeto Mais Médicos para o Brasil”, que será oferecido pelos Ministérios da Educação e da Saúde (cujos Ministros deverão disciplinar, por ato conjunto, a forma de participação das instituições públicas de educação superior e as regras de funcionamento do projeto) aos médicos formados em instituições brasileiras de educação superior ou com diploma revalidado no país e aos médicos formados em instituições de educação superior estrangeiras, por meio de intercâmbio médico internacional. Esse projeto é instituído como estratégia de aperfeiçoamento médico em ações de aperfeiçoamento em atenção básica, mediante especialização envolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão e integração ensino-serviço, combinando tais atividades com o atendimento de carências em regiões prioritárias para o SUS. A seleção e ocupação das vagas ofertadas observará a seguinte ordem: médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado no País, médicos brasileiros formados em instituições estrangeiras com habilitação para exercício da medicina no exterior e médicos estrangeiros com habilitação para exercício de medicina no exterior.

Integrarão o “Projeto Mais Médicos para o Brasil” o médico participante, que será submetido ao aperfeiçoamento profissional supervisionado, o supervisor, profissional médico responsável pela supervisão profissional contínua e permanente do médico e o tutor acadêmico, docente médico que será responsável pela orientação acadêmica.

Para o médico intercambista (formado em instituição de educação superior estrangeira com habilitação para exercício da medicina no exterior) participar do projeto, são estabelecidas as seguintes condições: apresentar diploma expedido por instituição de educação superior estrangeira, apresentar habilitação para o exercício da medicina no país de sua formação e possuir conhecimentos de língua portuguesa, dispensada a revalidação de seu diploma e autorizado o seu exercício da medicina exclusivamente no âmbito das atividades de ensino, pesquisa e extensão do “Projeto Mais Médicos para o Brasil”. E para que o médico intercambista possa exercer a medicina no contexto do projeto será expedido registro provisório pelos Conselhos Regionais de Medicina, sendo suficiente para esse fim a declaração fornecida pela Coordenação do Programa.

Os médicos participantes do projeto receberão bolsas nas modalidades bolsa-formação, bolsa-supervisão e bolsa-tutoria, podendo ainda receber ajuda de custo referente à instalação e ao deslocamento dos participantes e seus dependentes, sendo os valores das bolsas e da ajuda de custo e suas condições de pagamento definidos em ato conjunto dos Ministros do Planejamento, da Educação e da Saúde. A todos os médicos participantes do projeto é assegurado o enquadramento como segurado obrigatório da Previdência Social, na condição de contribuinte individual, ressalvados dessa obrigatoriedade os médicos intercambistas selecionados por meio de instrumentos de cooperação com organismos internacionais que prevejam cobertura securitária específica ou filiados a regime de seguridade social no seu país de origem, que mantenha acordo internacional de seguridade social com o Brasil.

Fica estabelecido que as atividades no âmbito do “Projeto Mais Médicos para o Brasil” não criam vínculo empregatício de qualquer natureza, sendo previstas as penalidades de advertência, suspensão e desligamento das ações de aperfeiçoamento aos participantes que descumprirem quaisquer das normas do Programa, inclusive as complementares. No caso de desligamento, poderá ser exigida a restituição dos valores recebidos a título de bolsa, ajuda de custo e aquisição de passagens, acrescidos de atualização monetária (conforme definido em ato conjunto dos Ministros da Educação e da Saúde) e, tratando-se de médico intercambista, o desligamento implicará o cancelamento do registro provisório no Conselho Regional de Medicina e o cancelamento do registro de estrangeiro.

O formato jurídico do “Projeto Mais Médicos para o Brasil” tem sido alvo de questionamentos, porque seria uma forma de precarização do trabalho médico, contemplado com o recebimento de bolsa mas sem qualquer reconhecimento de vínculo empregatício e dos direitos trabalhistas correlatos.

Todavia, o “Projeto Mais Médicos para o Brasil” foi instituído como uma modalidade de especialização (ou pós-graduação), ou seja, etapa da formação acadêmico/profissional do médico, em regime de integração ensino/serviço, tal como a residência médica, só que voltada para a formação/aperfeiçoamento/especialização para o trabalho médico de atenção básica no SUS.

A jurisprudência da Justiça do Trabalho já se consolidou no sentido de que esse tipo de atividade não configura vínculo de emprego, “caracterizando-se por treinamento em serviço e funcionando sob a responsabilidade de instituição de saúde, universitária ou não, sujeita a orientação de médicos de elevada qualificação ética e profissional” (Alice Monteiro de Barros), e, enquanto atividade de ensino, “não reúne trabalhador a pessoa física ou jurídica que o remunere essencialmente pelo serviço prestado, assim recusando a qualificação de relação de trabalho” (TST, RR 29500-53.2008.5.15.0046).

Nesse quadro, as atividades desenvolvidas pelos médicos no “Projeto Mais Médicos para o Brasil” não configurarão atividades de trabalho inerentes a uma relação de emprego, mas atividades de especialização (no caso, em atenção básica para o SUS), prestada e organizada por instituição pública de ensino superior envolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Daí o recebimento de bolsa, tal como sucede nos programas de residência médica (regulamentado pela Lei n° 6.932/1981) e mesmo nos programas de pós-graduação em geral (mestrado, doutorado).

Tudo estaria muito bem moldado juridicamente, não houvesse evidentes sinais de que a especialização/aperfeiçoamento em ações de atenção básica do SUS esteja sendo utilizada como mero disfarce para o verdadeiro objetivo do projeto “Mais Médicos para o Brasil” (e, afinal, de todo o “Programa Mais Médicos”), que é o de “enfrentar o problema da escassez de médicos no país, sobretudo em regiões prioritárias para o SUS” (Exposição de Motivos da MP n° 621/2013). Esse objetivo, não escamoteado, é assumido em toda a Exposição de Motivos da MP n° 621/2013 e em todo o seu texto, seja a partir dos objetivos do “Programa Mais Médicos” (por exemplo, explicitamente, “diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde”, “fortalecer a prestação de serviços na atenção básica em saúde no País”), seja no que se refere à própria nomenclatura do Programa e do Projeto (“Mais Médicos”, “Mais Médicos para o Brasil”).

Noutras palavras, os médicos que venham a ser selecionados como participantes do “Projeto Mais Médicos para o Brasil”, é o que tudo indica, irão exercer atribuições precípuas de médicos para atuação na atenção básica do SUS em regiões do país carentes de médicos. Atribuições que, hoje, nas cidades brasileiras onde a carência inexiste ou é bem menor, já são desenvolvidas por médicos que mantêm relações de trabalho ou de emprego, sim, seja com os Municípios, seja com os Estados, em atuação totalmente desconectada de atividades de especialização ou aperfeiçoamento acadêmico/profissional, mas exercício efetivo de trabalho médico essencial ao oferecimento da saúde como serviço público de obrigação fundamental do Poder Público, por meio do SUS.

Reforça essa leitura a circunstância de que, na MP n° 621/2013, não existe um plano específico para atração imediata de médicos para trabalhar na atenção básica do SUS – nas regiões onde a carência de médicos é maior – com vínculo de trabalho efetivo. A forma encontrada para essa atração foi a de camuflar o trabalho médico essencial na atenção básica como especialização médica, a permitir a precarização do vínculo em forma de participação em atividades de aperfeiçoamento/especialização, com pagamento apenas de bolsa e despesas com deslocamentos e instalação, mas sem qualquer garantia dos direitos trabalhistas inerentes ao trabalho médico essencial do SUS.

Esses sinais evidentes (ainda que o “Projeto Mais Médicos para o Brasil” preveja a figura do profissional médico responsável pela supervisão profissional contínua e permanente do médico participante e do docente médico responsável pela orientação acadêmica), somados à situação fática em que eventualmente fique demonstrada a atuação meramente substitutiva de médicos de atenção básica do SUS, podem configurar burla a um conjunto de normas constitucionais, como a que exige prévia aprovação em concurso público para exercício de cargo e emprego público e a que impõe isonomia de tratamento jurídico idêntico a situações idênticas, além daquelas que asseguram direitos trabalhistas quando configurada, na realidade da prestação de serviços, a relação de trabalho e mais especificamente a relação de emprego, como também aquelas outras que asseguram direitos estatutários a servidores públicos titulares de cargos públicos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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