Um século sem Machado de Assis

Numa mistura de alegria e tristeza, o dia 29 de setembro de 2008 marca um século sem o maior nome da literatura brasileira: Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908).  Conhecido por uma linguagem capaz de prender a atenção do seu leitor e por abordar questões relevantes da época em que viveu, ainda hoje ele é estudado e analisado por profissionais do mundo inteiro.
Em homenagem ao centenário da morte do mulato carioca, fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), o Portal Infonet conversou com Maria do Socorro Rocha, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e professora de Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Dentre muitas explicações ela foi bastante categórica: “Não adianta ler Dom Casmurro pensando numa possível traição de Capitu, pois ela é julgada sumariamente e há outras coisas mais relevantes nessa obra”. Confira.

 

Infonet – Em todo o Brasil, o dia de hoje é marcado pela homenagem ao centenário da morte de Machado de Assis. Que características fazem desse escritor o mais importante da Literatura brasileira?

Maria do Socorro – As obras machadianas são reconhecidas não só no Brasil, mas em todo o mundo. Tal sucesso é decorrente dos temas abordados em suas obras, que mexiam com a sociedade capitalista da época ao apresentarem temas como relações de favores e diferença de classes. Além disso, em seus textos, Machado costumava dialogar com o leitor, como numa conversa, fazendo com que houvesse maior expectativa em seus desfechos. Dada a grandiosidade da sua obra, Machado serve como uma espécie de coluna divisória entre gerações. Sua composição textual é tão complexa que não faz sentido classificá-lo em esquemas didáticos. Estudar Machado de Assis é, sem dúvidas, um aprendizado constante.

 

Infonet – Em seus textos, Machado faz várias abordagens sobre a classe dominante da época. Estaria ele mais interessado em evidenciar esse grupo?

M S – Não necessariamente. Machado vem de uma família humilde, era neto de escravos alforriados e teve uma infância pobre no morro carioca. Por muito tempo, acreditou-se que ele teria se aproximado da classe dominante por conveniência, mas na verdade, foi para ridicularizá-la, mostrando aos leitores que a sociedade da época era baseada em relações de favores, de classe e de poder, o que não é bem diferente nos dias atuais. A Capitu e o Escobar, de Dom Casmurro, são belos exemplos.

 

Infonet – Que significados teriam esses personagens?

M S – Nenhum autor escolhe o nome de seus personagens por acaso. Há um sentido em casa nome, em cada ação que lhes são proporcionados. Em Dom casmurro, Capitu reflete a entrada triunfante do capitalismo no século XIX. Quando criança, ela nunca entra pela porta da frente da casa do Bentinho, mas sempre por um “portãozinho aos fundos”. Além disso, costumava limpar os sapatos a toda hora para não parecer desfavorecida economicamente. Já Escobar é conhecido como calculista, tanto por gostar de matemática e fazer menção ao patrimônio alheio como por ter calculado uma suposta traição ao seu amigo Bentinho.

 

Infonet – Então Escobar e Capitu tiveram de fato um romance? Ela teria traído Bentinho?

M S – Dom Casmurro vai muito além de um suposto triângulo. As gerações foram lendo a obra na perspectiva da traição, mas a intenção não era essa. Machado faz um questionamento da traição do discurso, da palavra, conseqüentemente, das pessoas. No livro, Capitu é julgada sumariamente por Bentinho, que narra a história e aqui vem a questão da palavra. Será que ele conta a verdade ou mostra uma verdade criada por si mesmo? Durante anos, focou-se os estudos machadianos na possível traição, mas outras traições já haviam sido criadas por ele mesmo. Para um escritor de sua categoria, o que mais uma traição representaria? A palavra diz e não diz, nega e não nega. Esse é o interesse do autor: a reflexão da palavra. Não dá para passarmos anos tentando adivinhar se Capitu traiu ou não Bentinho, não vamos conseguir. Como num júri, é preciso ouvir os dois lados e, aqui, não há como saber a versão de Capitu.

 

Infonet – Capitu teria sido, então, vítima da própria palavra do escritor?

M S – O “enigma de Capitu”, sem dúvidas, foi proposital. Durante a infância, Bentinho é remetido a uma criança pura, católica e inocente. Já na vida adulta, ele é Bento Santiago, misturando-se ao personagem Iago, de Shakespeare, que representa a falsidade humana. Daí a desconfiança do personagem que julga sempre Capitu dissimulada. A única pessoa que, de fato, sabe a verdade – se é que há uma verdade -, morreu há cem anos. Se focarmos na traição, não chegarmos a lugar algum.

 

Colaboração Jéssica Vieira

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