Depois de horas – Araripe Coutinho

 

Depois de horas…

 

Vinha pela rua, preparando-me para me matar, quando encontrei um amigo antigo, daqueles que pensei que já não existia mais, que nunca mais veria. Mesmo dopado de lexotan, com dores pelas costas e desejo sexual inexistente há meses, perguntei a ele onde andava, estas perguntas triviais idiotas que fazemos aos humanos. Ele alegre, cheio de vida, com uma roupa espalhafatosa, terno claro com palas vermelhas puxando pro bege, um cabelo imenso, vespertino, disse: “maravilhoso, queridinho. Melhor impossível, coisa. Deslumbrante. Aterrorizante, como sempre, mas vivo.” Ri com o canto da boca, meio sem acreditar e o convidei para tomar um café, o que o mesmo foi logo dizendo: com leite, por favor. Como você quiser disse a ele, embaçado pela sua alegria contagiante. Fui vendo, aos poucos, que seus olhos, foram ficando menores, e a bicha, toda feliz começou a despencar, ficar pior do que eu, desmanchar em choro, ali naquele balcão frio do Shopping Jardins, numa cena de ilusões perdidas de Balzac. – Sabe, bicha, ninguém me chama pra nada. Nem pra tomar um café. E agora, você, uma bicha gorda, detestável, me pagando um. Eu ri muito. Imaginei como fui ficando, com o tempo, uma bicha feia, preconceituosa, com ternos finos e carro com ar e viagens e champanhe e tanta sorte de biografias e livros que em nada diminuíram o meu leque(lexotan). Tive inveja, por minutos, da minha amiga bicha sem emprego, sem notas, sem família. Ele já tinha rodado o mundo: Cuba, Espanha, Londres, Itália e me disse que ficava na frente do Cemitério chamando as mariconas para um bacio. Ó céus! Quando vi a tarde já tinha ido. E o meu amigo também. Estava eu de novo, tonto, só, de volta para o meu quarto,  onde nada respondemos de nós mesmos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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