Democracia, crise, presidencialismo e perda de mandato

Demorou, mas finalmente se disseminou, inclusive no plano das instituições, a percepção de que o Governo de Jair Bolsonaro é assumidamente um risco de ruptura formal democrática.

O recuo tático dos meses de agosto e julho – recuo no sentido da suspensão temporária dos atos de tensão permanente e declarações de confronto e mesmo ameaças aos poderes constituídos – somado aos acordos políticos com o “centrão” (no que abandona o discurso de defesa de uma “nova política” e combate à “política tradicional” de que porém sempre foi parte), não foi capaz de esconder a sua natureza e o seu jeito de ser, ao se negar a responder pertinentes perguntas de interesse público efetuadas por jornalistas e, mais além, ameaçar prática de ato de violência, bem ainda renovar apologias à ditadura militar, por ocasião das comemorações da independência nacional.

E, em meio à pandemia global do COVID-19 e da grave crise humanitária, econômica, social e política dela decorrente, também já se disseminou a percepção de que a postura negacionista e anticientífica com que o Governo Federal mais do que se omitir, boicotou e boicota a eficácia das necessárias medidas de prevenção e enfrentamento, também se disseminou a certeza de que a sua saída do Governo – por vias democráticas – é elemento fundamental para que consigamos minimizar os efeitos da crise e superar os obstáculos com a redução possível dos seus efeitos trágicos. Noutras palavras: sob a liderança de Jair Bolsonaro, improvável será superar toda a crise decorrente do coronavírus e todas as evidentes ameaças de ruptura institucional democrática.

Já se comentou aqui, neste mesmo espaço da Infonet, logo no início da pandemia no Brasil, a lamentável atuação da União, pelo Presidente da República, no sentido de contrapor-se aos Estados e Municípios que haviam decretado medidas de quarentena, como suspensão do funcionamento de bares, restaurantes, academias, do comércio em geral, shoppings, cinema, teatro, casas noturnas, atendimento ao público em agências bancárias, cultos e missas, entre outras [todas voltadas à redução da circulação de pessoas e o contato propício ao contágio], que gerou crise institucional federativa e que precisou ser resolvida mediante decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672 proposta pelo Conselho Federal da OAB, em que se assentou possuírem os estados autonomia para adoção das medidas necessárias ao enfrentamento do COVID-19, devido tratar-se o tema (cuidar da saúde pública) de matéria de competência comum e concorrente de todos os entes federativos.

Todo esse quadro remete ao exame das possibilidades constitucionais e legítimas de que seja derrubado o Governo Jair Bolsonaro.

A não ser que renunciasse ao seu mandato – o que não se imagina vá ocorrer, muito pelo contrário – só há três caminhos viabilizadores: 1 – perda do cargo decorrente de condenação, pelo Supremo Tribunal Federal, pela prática de crime comum; 2 – perda do cargo decorrente de condenação, pelo Senado Federal, pela prática de crime de responsabilidade; 3 – cassação da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão, pelo Tribunal Superior Eleitoral, em processo de apuração de abuso de poder econômico ou político durante as eleições de 2018.

Embora sejam inúmeros e muito bem tipificados os crimes de responsabilidade praticados reiteradamente por Jair Bolsonaro e embora existam indícios consistentes de prática de crime comum, qualquer abertura de processo (seja por crime comum, seja por crime de responsabilidade) contra Presidente da República depende de prévia autorização da Câmara dos Deputados por decisão favorável de 2/3 dos votos.

E é exatamente essa prerrogativa constitucional que faz com que seja improvável, ao menos nesse momento, qualquer abertura de processo contra o Presidente da República Jair Bolsonaro, seja por crime comum, seja por crime de responsabilidade, e isso parece decorrer de ao menos quatro fatores fundamentais: 1 – a composição política já antes mencionada do Presidente da República com o “centrão”, o que lhe assegura mais de 1/3 dos votos dos deputados federais e portanto impede que seja alcançado o quórum de 2/3 a favor dessa autorização; 2 – a satisfação resignada do poder econômico e da direita liberal, capazes de conviver sem maiores problemas com os arroubos autoritários e mesmo comportamentos indecorosos e declarações estapafúrdias envolvendo direitos de cidadania e costumes, desde que as medidas econômicas concentradoras de riqueza e socialmente regressivas para o mundo do trabalho permaneçam como vetor fundamental de atuação do Governo; 3 – o apoio que 30% da população brasileira dá ao Governo, segundo pesquisas; 4 – as dificuldades de mobilizações populares em prol da queda do governo em tempos de isolamento e distanciamento social necessário por causa da pandemia ainda descontrolada entre nós, isso a despeito das mobilizações antifascistas realizadas no mês de junho, puxadas sobretudo pelas torcidas de futebol antifascistas.

Restaria, então, a via da cassação da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão, pelo Tribunal Superior Eleitoral, em processo de apuração de abuso de poder econômico ou político durante as eleições de 2018. São vários os processos nesse sentido que lá tramitam, sendo o mais relevante aquele que aponta abuso de poder econômico no financiamento empresarial de impulsionamento massivo de mensagens instantâneas em aplicativos para disseminação de “fake news” eleitorais.

Essa via, no entanto, não é de fornecer muitas esperanças. Nos termos da lei, a configuração do ato como abusivo depende da gravidade das circunstâncias que o caracterizam, e esse sopesamento da gravidade da conduta em casos de abuso de poder nos processos eleitorais, notadamente quando envolve mandatários eleitos diretamente pelo povo, especialmente Presidente da República, tem sido efetuado com autocontenção pelo Tribunal Superior Eleitoral, em prestígio ao princípio democrático e à soberania popular demonstrada na votação.

Somente uma percepção mais acurada de provas realmente robustas e evidentes, acompanhada de despertar definitivo da sociedade e das instituições, pode levar a uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral condenatória da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão por abuso de poder econômico nas eleições de 2018, que leve à perda de seus mandatos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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